Gregório de Matos na sala dos espelhos

[Resenha publicada originalmente no Suplemento Pernambuco de Julho/2015]

Por Renata Beltrão

Capa Musa Praguejadora AG V3.inddNo terceiro andar do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, o video mapping projetado no anverso do telhado ilustra visualmente a leitura de poemas e textos icônicos da literatura brasileira; as vozes de atores, atrizes, escritores, cantores e artistas em geral, saem de discretas caixas de som. O público assiste ao espetáculo de cores mais ou menos imóvel, até que o tom de leitura é substituído pelo da batida de hip hop, enquanto uma luz estroboscópica acompanha o ritmo. Entra a voz do rapper Rappin’ Hood, cantando um poema que fala sobre uma cidade tomada pela corrupção. Agora hipnotizada, a plateia acompanha atentamente os versos rimados, cuja atualidade é ressaltada pela música. O texto, no entanto, tem mais de 300 anos. É identificado pela didascália Juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da República em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia, mais conhecido simplesmente como Epigrama ou Epílogo, do poeta baiano Gregório de Matos e Guerra, que acaba de ganhar biografia composta pela escritora Ana Miranda.

*A relação entre Ana Miranda e Gregório de Matos não é nova. Em 1989, a estreia da jornalista cearense na literatura se deu com Boca do inferno, romance histórico que trazia o poeta barroco como personagem principal. Ancorado em uma sólida pesquisa documental, o livro navegava entre Literatura e História, como viriam a ser quase todos os trabalhos posteriores de Ana. Boca do inferno lhe rendeu um Prêmio Jabuti em 1990 e, com ele, a entrada no mundo literário brasileiro.

Vinte e seis anos depois, essa volta a seu personagem primevo se dá pelo caminho reverso, como num jogo de espelhos. Em Musa praguejadora, estão lá pesquisa histórica e documental, como convém a um trabalho biográfico, mas seu uso vai tão longe do convencional que chega a ser contraditório o rótulo de “biografia definitiva” que a Editora Record crava na orelha.

Ao fim de 555 páginas de leitura, são outras duas coisas que se mostram definitivas: o fascínio que Gregório de Matos ainda exerce nos leitores brasileiros e a perícia de Ana Miranda na construção de um livro que não se pode classificar facilmente. Aliás, curiosamente contradizendo seu departamento de marketing, a editora o catalogou oficialmente como romance.

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Musa praguejadora é e não é uma biografia, é e não é um romance. E não é uma simples mistura entre os dois.

Ana Miranda já revelou ter uma preocupação gestáltica com a forma, que aqui se expressa na divisão visualmente clara entre trechos biográficos, em corpo normal, e criação literária, sempre em itálico.

No fuso biográfico, o fio do texto segue um esquema mais ou menos tradicional: a história do poeta começa a ser traçada a partir das origens dos seus antepassados, das circunstâncias de seu nascimento, da infância e da juventude, do estabelecimento como advogado e conceituado funcionário da igreja, dos conflitos da idade adulta, até a morte. Musa praguejadora também faz um vívido retrato da sociedade e das relações sociais na Bahia do século 17, formando um conjunto até mais interessante do que os pormenores da vida de Gregório de Matos.

Mas é nos capítulos literários que o livro realmente se revela. Nestes, os poemas do Boca do Inferno são interpretados para atuar como uma espécie de autobiografia póstuma. Ana costura trechos de diferentes textos do autor, organizando-os como trilhas de pensamento, para que a voz de seu inconsciente nos chegue, três séculos depois de sua morte. Dessa colcha de retalhos temos o que Ana considera ser o retrato das motivações de Gregório de Matos, quando escrevia sobre mulheres, sobre a corrupção na Bahia, sobre a angústia de ser ao mesmo tempo idolatrado e condenado por seus versos:

“De que pode servir calar, nunca se há de falar o que se sente? Sempre se há de sentir o que se fala! A mudez canoniza bestas feras. Sou largo em sentir, sucinto em respirar, e quando sofro, me calo, tão fino e tão atento que disfarço meu tormento, mostro o que não padeço, mas sei o que sinto. A minha dor que encubro, ou desminto, é sustento dentro do coração que, para penar, é sentimento, e para não me entender, é labirinto”.

O trecho em prosa rimada deixa patente sua origem, numa construção engenhosa que não deixa de manter sua fidelidade aos textos de Gregório de Matos, mas ao mesmo tempo oferece um novo olhar sobre o que podem ter sido os sentimentos de seu autor, exacerbado pela compilação de versos que originalmente faziam parte de dois poemas diferentes – Aos vícios e Admirável expressão que o poeta faz de seu atencioso silêncio.

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Além de tudo, Ana Miranda construiu uma biografia da qual é possível fazer spoiler. Um feito e tanto, quando se trata de um biografado morto há tanto tempo, em circunstâncias mais ou menos bem registradas. O segredo reside no que Musa praguejadora tem de romance, não apenas baseado nos versos deixados por Gregório de Matos, mas também pela força criativa que é exclusividade da escritora. Assim, o primeiro biógrafo do Boca do Inferno, Manuel Pereira Rabelo, vira, ele próprio, um personagem, com papel fundamental na trama paralela inventada por Ana como espelho da biografia.

Publicado poucas décadas após a morte de Gregório de Matos, o livro de Pereira Rabelo foi também o primeiro a compilar os mais de 700 poemas atribuídos a ele, acrescendo a cada texto as didascálias (espécie de resumos) no papel de títulos, já que o poeta mesmo não os atribuía. Até hoje, pouco se sabe sobre o misterioso autor, cujo trabalho foi fundamental para que conheçamos o poeta baiano nos dias de hoje.

Ana lida com esse mistério pelo viés do sobrenatural. Talvez Gregório de Matos viva e se manifeste em seus biógrafos, por meio dos seus poemas. Talvez tenha se manifestado na própria Ana em Musa praguejadora. Talvez.

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Se houvesse um rótulo possível para este livro, “biografia sentimental” seria minha aposta. Musa praguejadora pode ser lido como a história não de Gregório de Matos simplesmente, mas da relação de Ana Miranda com ele e com sua obra. “Bastariam os poemas como sua biografia”, diz a Ana, numa frase chave para se entender o livro.

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Musa praguejadora é também um trabalho sobre o feminino, caminho tão marcante na obra de Ana Miranda quanto a trilha dos romances históricos – mesmo que a História seja dominada por personagens masculinos. Desmundo (1996) dá voz às invisíveis mulheres dos primeiros anos da colonização brasileira, órfãs trazidas de Portugal para procriar crianças brancas em casamentos forçados. Amrik (1997) é a história dos imigrantes libaneses na São Paulo do final do século 19, mas pelos olhos de uma adolescente cujo maior prazer era dançar. Dias e Dias (2010), embora baseada na biografia de Gonçalves Dias, é a história do amor platônico que a personagem Feliciana nutre pelo poeta da Canção do exílio.

Assim, a biografia de Gregório de Matos é também um excelente registro histórico da condição das mulheres do Brasil do século 17, inclusive no que diz respeito à forma como o poeta as tratava em seus textos. Assumidamente boêmio, Gregório de Matos manteve casos esporádicos com dezenas de mulheres, das mais variadas condições sociais. Na fase da conquista, aparecem sempre como virtuosas e altivas; quando finalmente as consegue, não raro passam a ser tratadas com virulência e referências chulas. Embora de consciência apurada quanto ao contexto político, o Boca do Inferno considerava as mulheres inferiores e submissas, refletindo o pensamento vigente na sociedade da época.

Especialmente interessante é o capítulo dedicado ao Convento de Nossa Senhora do Desterro. Construído na Bahia com o dinheiro doado por famílias ricas, o convento passa a receber as moças cujos pais optaram por não as dar em casamento, para poupar a família do pagamento do dote. Como freiras, as sinhazinhas ganhavam uma liberdade da qual não desfrutavam em casa. Mantinham-se atendidas por escravas, longe dos trabalhos pesados e das convenções sociais que reinavam nas casas de família. E não raro conseguiam manter casos amorosos regulares, dentro mesmo do convento. Vários dos poemas satíricos de Gregório de Matos – ele mesmo dado aos amores freiráticos – dizem respeito ao comportamento das noviças.

No fim do livro, Ana Miranda apresenta seu “ramilhete de flores”, uma extensa lista, em ordem alfabética, apresentando todas as mulheres imortalizadas como personagens do poeta.

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Em 2012, Ana Miranda foi uma das convidadas do Festival da Mantiqueira, evento literário intimista realizado anualmente em São Francisco Xavier, distrito de São José dos Campos, no interior de São Paulo. Numa sala pequena a audiência ouvia atentamente a escritora. Ana falou por vários minutos sobre seus textos e desenhos voltados ao público infantil. Ostentando cabelos brancos com desenvoltura e jovialidade, curtia o novo papel de avó e fazia dele literatura.

Já ao fim do encontro, ela falou brevemente sobre Boca do Inferno (1989), confessando que se sente ingrata ao livro – “Gosto mais de Desmundo”, justificou. Olhando novamente as anotações da época, vejo que várias de suas observações poderiam ser aplicadas em reverso também à Musa praguejadora. “Boca do Inferno foi absolutamente respeitoso na construção clássica, embora tenha sido ‘bordado pelo avesso’” – ou seja, literatura construída a partir da História, baseada em fontes de pesquisa, mas livre na escrita e na especulação do que não está sacramentado em documentos.

Ana também festejava o que para ela parecia ser uma “mudança fantástica” no modo contemporâneo de fazer História, algo que permeia toda sua obra e que colocou novamente em prática em seu novo livro: menos atenção às datas e fatos, mais às mentalidades de época, aos modos de pensar e às práticas sociais. Entre as montanhas da Mantiqueira, afirmou: “romancistas são historiadores que fingem estar mentindo; historiadores são romancistas que fingem falar a verdade”. Musa praguejadora fica exatamente entre os dois extremos.

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Gregório de Matos foi exilado em Angola em 1694 por causa dos poemas satíricos em que atacava as autoridades brasileiras. Nunca pôde voltar à Bahia. Conseguiu salvo-conduto para entrar novamente no Brasil em 1695, mas quedou-se no Recife. Ao chegar, provavelmente apresentou-se ao governo, como era praxe aos notórios da época, visitando o palácio de Friburgo, deixado por Maurício de Nassau antes do encerramento da ocupação holandesa em Pernambuco, quatro décadas antes.

Morreu doente em dezembro de 1695, quando a cidade festejava a morte de Zumbi e a destruição do Quilombo dos Palmares. O Boca do Inferno foi então enterrado na capela do hospício de Nossa Senhora da Penha, conhecida também como Penha dos Franceses, demolida décadas depois. As informações sobre a igrejinha são escassas, mas é possível que tenha existido no local onde hoje se eleva a basílica da Penha, dos frades capuchinhos, nas imediações do atual mercado de São José.

Não houve lápide ou epitáfio; até hoje não há nenhuma indicação no Recife de que a cidade guarda os restos mortais do poeta que há três séculos seduz o Brasil.

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