Sim, eu guardo livros.

A minha timeline tem mostrado com frequência crescente posts pregando desprendimento com relação aos livros. Tem quem organize feirões de troca e quem advogue pelo bookcrossing; tem quem considere crime manter um livro já lido em casa e tem também quem abomine o “vício” de colecionar. Por esses dias, li um artigo que cravava: “livros foram feitos para circular”. Por razões que não deixam de ser bem egoístas, gostaria de oferecer um contraponto – a partir da minha experiência pessoal, claro, mas acho que outras pessoas também vão se identificar.

A necessidade de ter espaço para os meus livros foi uma das principais razões pelas quais, aos 15 anos, decidi economizar tudo o que pudesse para sair da casa dos pais. Quando consegui, a primeira e única reforma que fiz foi para a instalação de uma biblioteca. Menos de cinco anos depois, veio a mudança inesperada para São Paulo. Poderia ter vendido todos os meus móveis no Recife para recomprar novos aqui, o que sairia bem mais barato. Mas eu tinha 20 caixas de livros para transportar, e isso justificou uma mudança de 2.700 quilômetros.

Quando olho para as minhas estantes, a única coisa que penso é: “bebês, vocês não vão a lugar nenhum sem mim!”.

Por que tudo isso?

O livro não é só um suporte. É uma invenção perfeita, como a roda. Desde o surgimento do códice, no século II, mudaram os materiais e as técnicas, mas o formato do livro continua igual. Mesmo os e-readers contemporâneos tentam emular o códice, com “páginas” que “viramos”. A imprensa, inventada no século XV, deu início à popularização da palavra escrita e isso evoluiu ao ponto em que aprendizado da leitura se constitui hoje um direito básico de todo ser humano. Ter livros por perto talvez seja uma atitude atávica de marcar pertencimento a uma raça que encontrou essa forma de dobrar o tempo e o espaço. Para alguns de nós (é o meu caso), isso bate bem forte.

Nunca tinha pensado nesses termos, mas olha aí: o livro é uma máquina do tempo em potencial. Para que este potencial se concretize, ele precisa ser guardado, conservado em bom estado e eventualmente passado adiante. Acho ótimo que os livros circulem e amo bibliotecas de empréstimos – elas foram fundamentais aos meus anos de formação como leitora. Mas a manutenção de coleções particulares garante em grande medida a preservação de exemplares para o futuro.

A não ser no caso dos bestsellers, uma primeira edição no Brasil não sai com mais de 3.000 unidades para um autor já gabaritado. Na maioria dos casos, não passa dos 500. Alguns excelentes escritores contemporâneos só terão seu valor atestado daqui a décadas, quando a primeira edição de seus livros já há muito tiver se esgotado. Se o texto foi ignorado no lançamento e nos anos subsequentes, é muito provável que seu registro (mesmo digital) seja negligenciado pelo próprio autor. Restarão os poucos livros preservados em coleções privadas, até que sejam descobertos por alguém que lhes restitua o valor.

Além disso, com sua materialidade expressa no tipo de papel, na fonte, na diagramação, nas ilustrações, na qualidade da impressão, na encadernação, na capa, o objeto livro é também um testemunho da técnica de seu tempo. Em Memória vegetal, Umberto Eco (ele próprio um grande colecionador) fala bastante sobre os livros quinhentistas impressos em páginas de couro e pele; e sobre como os livros contemporâneos de papel têm uma perspectiva de vida muito mais curta, o que demanda ações de conservação. O envelhecimento do livro é parte constituinte dessa história da técnica.

Umberto Eco fala também sobre como uma biblioteca é um organismo vivo. Uma coleção de livros é como uma impressão digital que vai mudando com o tempo: única e ao mesmo tempo em evolução constante. A escolha dos livros e a relação entre eles criam novos sentidos para cada obra e para o seu conjunto. O presidente negro ou o choque das raças, de Monteiro Lobato, ganha significados diferentes se está na estante de romances brasileiros ou dividindo a prateleira com livros sobre a questão racial no Brasil (é o meu caso). Por isso, uma biblioteca caseira é também uma expressão de individualidade.

IMG_4806

Por muito tempo abominava a ideia de ter livros marcados. Depois, entendi que minha relação com o livro é tão importante quanto o livro em si, e faço minhas anotações à lápis sem autocensura. Por muito tempo, anotava no frontispício meu nome, data e local de compra; agora, tenho um Ex-libris. Quando comecei a frequentar eventos literários, passei também a perder vergonha de pedir autógrafos – outra marca que soma à trajetória do exemplar. Pra quem ainda não notou, “Todo livro tem uma história” é o slogan do Lombada Quadrada. 😉

Enfim, acho massa quem tem desprendimento suficiente para abrir mão dos livros já lidos, mas já não é tão legal quando a coisa parte para a ortodoxia. O que às vezes vem implícito nesta linha de argumentação (em alguns casos, explícito mesmo) é que guardar livros é mau, porque assim outras pessoas não terão acesso à leitura.

Galera, a razão pela qual os níveis de leitura no Brasil são ridículos não é a falta de livros. Os governos são os maiores clientes das editoras. As bibliotecas públicas, bem ou mal, são o equipamento cultural mais presente em todo o território nacional (vejam aqui) e, se não existem em todos os municípios brasileiros, certamente estão naqueles que concentram a maior parte da população. Sim, faltam bibliotecas escolares e isso é um problema real.

Quer outro? As práticas de ensino brasileiras afastam as pessoas dos livros em vez de formar leitores – tanto nas escolas públicas quanto nas privadas. Nem vou me estender nisso: basta que cada um relembre seus tempos de escola e avalie que tipo de estímulo à leitura recebeu. Poucos de nós tiveram a sorte de passar por professores realmente inspirados (Carlos, coautor do blog, foi um deles). A maioria chega aos livros sozinho, porque aqui vem outro problema real: como formar leitores em famílias nas quais ninguém lê?

O melhor estímulo é o exemplo. E faltam exemplos, não livros.

PS: Esse post me fez lembrar desse vídeo. Acho que é um programa de humor sueco, que satiriza as agruras dos help-desks de informática com uma brincadeira sobre a invenção do códice. É sensacional.

9 comentários sobre “Sim, eu guardo livros.

  1. Renata, seu post me salva e me redime….assino em baixo, no alto e dos lados…sinto o mesmo que vc em relação aos livros…gratidão.

    Curtir

  2. Também sou assim. Guardo meus livros pelos mesmos motivos e, principalmente, pelo fato de marcá-los sempre, o que faz dele uma ponte de um eu futuro, para um eu passado, da qual não quero me desfazer.

    Curtido por 1 pessoa

  3. Eu concordo em termos, o fato de constarem bibliotecas em uma lista, não significa que existam de fato, ou ainda, que sejam boas bibliotecas. Fortaleza, que é uma cidade grande, tem duas bibliotecas públicas, da prefeitura, a maior está fechada, funcionando de forma muito precária a outra e não são boas. A melhor biblioteca de Fortaleza é da Universidade de Fortaleza que é privada e restringe o uso para quem não é aluno. Tirando o Rio e São Paulo é difícil encontrar bibliotecas boas e realmente amigáveis. Dito isso, eu estou sempre tentando me desfazer de livros, dando para eu sei que gosta tanto quanto eu, basicamente, um primo, sei que ele coloca alguns naqueles pontos onde você doa livros, eu não tenho coragem de fazer isso diretamente, mas também sei que as pessoas pegam. Ainda assim, tenho quatro estantes cheias e por mais que baixe livros digitais, continuo comprando livros, muitos. Acho que venho de uma época em que o mercado editorial não era tão desenvolvido, o livro pelo menos para mim era muito caro, em Manaus, não tinha (boas) livrarias, sebos, aqui mesmo em Fortaleza não tinha boas livrarias, meu tio importava da Livro Sete de Recife, não tinha internet e eu não lia em outras línguas, acho que tudo isso, fez com que eu tenha juntado tantos livros e continue comprando. Antes eu lia tudo que meus pais compravam e lia emprestados de amigos, família, bibliotecas e alugados também. Gosto tanto de bibliotecas que até trabalhei em uma, do Ibeu no RJ que é muito boa. Um rato de livros sempre dá um jeito, o essencial é a leitura, não a posse do livro. Eu recomendo a leitura de “Como falar dos livros que não lemos”, o título irônico engana, na realidade é um elogio da leitura, os livros do Manguel também são muito bons. Acho que o ponto principal que você tocou é como a escola pode incentivar a leitura, lembro que no meu tempo, o primário, fundamental (?), era dado pela mesma professora, a minha foi a Aldenora e nós podíamos escolher os livros e a maneira como ler, fora da sala, sentados no chão, isso foi maravilhoso. Também tive a sorte de ter na família pessoas que gostam muito de ler e de escrever também e aí a gente vai procurando pares, ou não, afinal, os livros já são ótimos amigos, obrigado pelo convite à reflexão. Ah, também demorei a riscar os livros, já tive um carimbo, mas acho o ex-libris muito chic, hoje escrevo mesmo. Um abraço.

    Curtir

    1. Oi, Hugo, como eu disse no post, acho ótimo quem tem esse tipo de atitude. Sei que a maior parte das bibliotecas é precária, mas como você colocou, quem é rato de leitura sempre dá um jeito. Minha intenção foi criar um contraponto, porque doar é ótimo, mas manter uma biblioteca caseira também. Tem espaço para todo mundo e as duas atitudes estimulam a leitura. Obrigada pela leitura!

      Curtir

  4. cê recebe a pessoa na sua casa e ela, por um tempinho, admira as suas estantes. ‘uau, quantos livros.’ um sorrisinho, ok. ‘mas é muita coisa. por que manter tantos livros em casa? não pensa em doar pra alguma biblioteca?* você tem tão pouco espaço.’

    pensei na resposta mais simples e que justificasse meu apego: ‘eu releio.’

    ‘ah.’ é, também percebi o tom de incredulidade.

    sim, eu releio. consulto. folheio. cada livrinho da minha estante tem uma estória. vou saber dizer quando comprei, onde, em qual ocasião, o motivo pra tê-lo comprado e mantido até hoje, quem me deu de presente, quem eu era na ocasião. [às vezes, não consigo entender nem lembrar por que fiz determinada anotação na margem ou sublinhei certa passagem; não me diz mais nada ou, na ‘pior’ das hipóteses, me diz outra coisa — o que é ótimo, concorda?]

    * por que ninguém diz ‘não pensa em VENDER prum sebo ou pra alguém’ em vez de insistir em ‘doar pralguma biblioteca’? biblioteca não é depósito de livro; nem todo livro serve pra qualquer biblioteca; o espaço físico da biblioteca pode ser maior que o meu, mas também é finito.

    Curtido por 1 pessoa

  5. Outro dia estava olhando para minhas estantes e pensei comigo mesmo “é, está na hora de ter um ex libirs”.
    Mesmo usando o Kindle ativamente, ainda compro livros em papel, mas estou ficando sem espaço.

    Curtir

  6. Doar livros esperando criar leitores é o mesmo que doar equipamentos de musculação esperando criar atletas. Se o problema da falta de leitura entre os brasileiros fosse resolvido apenas dando livros, eu daria todos os meus e ainda financiaria compras para distribuir. Mas o problema é mais complicado. Tem muita preguiça das pessoas de aprender a gostar de ler. E também não dou os meus livros porque eles são o simbolismo do tipo de mentalidades que eu consumo. Ter estantes cheias de livros é suficiente para mostrar para nossas visitas o que pensamos, e ótimo para puxar assunto. Nada mais triste numa casa do que uma casa sem um amontoado de livros.

    Curtido por 1 pessoa

Deixe um comentário