Frases que Clarice realmente escreveu

Clarice Lispector é provavelmente a escritora mais injustiçada da internet. Não porque seja alvo de críticas ou que esteja esquecida. Dona de uma obra complexa, ela é citada à exaustão nas redes sociais. Mas, em geral, o que se vê sendo compartilhado por aí são frases fofas e edificantes totalmente deslocadas do contexto original de seus textos – isso quando não passam de invenção pura e simples. Tomada como verdade, a Clarice do Facebook seria uma Amélia muito da chatinha.

Sua obra não é fácil nem homogênea, é bom que se diga. A ótima biografia Clarice, (com vírgula mesmo) do americano Benjamin Moser (Cosac Naify) dá a medida justa dos altos e baixos de sua produção. Se há algo de comum em seus textos é o uso do mundo interior como matéria-prima: ela botava as tripas na mesa de uma maneira até então inédita na literatura brasileira e provavelmente mundial, às vezes até mesmo em crônicas para publicação na imprensa.

Só que a forma como esta característica é interpretada pela maioria das pessoas – incluindo as que replicam suas frases sem ter lido nenhum de seus textos – diz muito sobre nossa sociedade patriarcal. Clarice era mulher (óbvio) e escrevia sobre emoções, logo sua literatura é tomada como feminina em tudo o que há de mais superficial acoplado a essa interpretação – o sentimentalismo raso, uma “sabedoria” inerente à condição feminina e alguma futilidade, por exemplo.  

Não esqueçamos, o trabalho mais marcante de Clarice Lispector é A Paixão segundo G.H., no qual a personagem principal imerge em um momento epifânico após esmagar uma barata na porta de um guarda-roupas. Mesmerizada pela imagem do inseto partido ao meio, com seu ventre estourado, ela até mesmo se imagina comendo o animal na intenção de se reconectar com o divino.

Pra mim, foi uma leitura aterrorizante. A barata de Kafka em A Metamorfose era obviamente uma alegoria, enquanto a barata esmagada d’A Paixão é absolutamente real, assim como os pensamentos escatológicos que passam pela cabeça de G.H. – e de qualquer ser humano normal. Olhar aquilo no papel é assustador, porque é encarar a exposição de uma certa gama de sentimentos que a gente não se atreve a externar nem pra nós mesmos.

O quão feminino é isso? Fecho com a galera do #leiamulheres: não existe literatura feminina; o que existe é literatura feita por mulheres.

Para quem deseja se aventurar no universo de Clarice, o lançamento de Todos os contos pela editora Rocco vem bem a calhar. É a primeira vez que todo o trabalho da autora como contista é reunido em um volume único, lançado primeiro nos Estados Unidos pelo biógrafo Benjamin Moser, e considerado por lá como um dos melhores livros do ano. A obra cobre um período longo da produção de Clarice e apresenta toda uma variedade de temas e abordagens, dos mais palatáveis, memorialistas, a alguns outros próximos do tom d’A Paixão segundo G.H..

Vários dos contos de Clarice têm lugar no ambiente familiar, o que reforça o estereótipo da tal literatura feminina. Mas, atenção: mesmo sob tramas aparentemente domésticas (e nunca são só isso) há uma preocupação constante em dar voz a mulheres “silenciosas e silenciadas”, como diz Moser na introdução, numa forma clara de expor a repressão de gênero.

Há vários outros enfoques possíveis a Todos os contos, mas não vou ficar chovendo  no  molhado em cima de um livro que já foi resenhado à exaustão nos últimos meses. Junto com minha recomendação de leitura, deixo pra vocês uma coleção de frases que Clarice realmente escreveu, e que estão em Todos os contos. É claro que esse recorte não representa exemplarmente a obra de Clarice – o objetivo aqui é mostrar que ela é uma escritora muito mais complexa do que as redes sociais dão a entender.

Sinta-se à vontade para compartilhar suas frases preferidas – mas se elas vão fazer sucesso ou não com os amigos do Facebook… bem, é por sua conta e risco. 😀

 

Frases de Clarice Lispector em Todos os Contos
(Entre parênteses, o nome do conto em questão)

“Para que um sentimento perca o perfume e deixe de nos intoxicar-nos, nada há de melhor que expô-lo ao sol.” (Em Obsessão)

“O presente já é passado. Estire os cadáveres dos momentos mortos em cima da cama, Cubra-os com um lençol alvo, ponha-os num caixão de menino. Eles morreram crianças ainda, sem pecados.” (Em O delírio)

“As coisas foram feitas para serem ditas à luz do dia e se não se pode dizê-las é porque são de má qualidade.” (Em Cartas a Hermengardo)

“Se tu não puderes te libertar de desejar paixões, lê romances e aventuras, que para isso também existem os escritores.” (Em Cartas a Hermengardo)

“- O quê?
– “O quê” o quê?
– Hein?”
(Em Mais dois bêbados)

“O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada.” (Em Amor)

“Ela amava o mundo, amava o que fora criado – amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a.” (Em Amor)

“Em que momento é que a mãe, apertando uma criança, dava-lhe esta prisão de amor que se abateria para sempre sobre o futuro homem.” (Em Os laços de família)

“Vida nascendo era tão  mais sangrento do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver a matéria inerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo… Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago.” (Em Os desastres de Sofia)

“Ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. – Eu te amo, ovo.” (Em O ovo e a galinha)

“Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor.” (Em O ovo e a galinha)

“Perdoai-vos, eles acreditam na fatalidade e por isso são fatais.” (Em A pecadora queimada e os anjos harmoniosos)

“É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato nas mãos.” (Em Perdoando Deus)

“Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.” (Em Perdoando Deus)

“Deus é burro. Porque ele não entende, ele não pensa, ele é apenas. É verdade que é de uma burrice que executa-se a si mesma.” (Em O relatório da coisa)

“Uma pessoa leu meus contos e disse que aquilo não era literatura, era lixo. Concordo. Mas há hora pra tudo. Há também a hora do lixo.” (Introdução ao livro A via crucis do corpo)

“Às vezes não se tem nada a fazer e então se faz pipi.” (Em Por enquanto)

“Ai se a radiopatrulha me pega e me sova! aí eu lhes digo a pior palavra da língua portuguesa: sovaco. E eles caem mortos. Mas para ti, meu amor, sou mais delicada e digo baixinho: axilas…” (Em Brasília)

E a minha preferida:

“Eu te amo, oh, extrósima! oh palavra que inventei e que não sei o que quer dizer. Oh furúnculo! pus cristalizado mas de quem? Atenção: há esperma no ar.” (Em Brasília)

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8 comentários sobre “Frases que Clarice realmente escreveu

  1. Então, a frase “Após a tempestade o sol brilha” é dela mesmo. Não sei de livro algum que a tenha…Alguém saberia dizer?

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