Casa Grande & criminalidade

A arte é como uma antena para o infinito – capta a matéria invisível ao redor do nosso tempo e a entrega ao mundo decodificada ao seu modo; ainda misteriosa e às vezes mística, mas antecipando sentimentos e raciocínios ainda inapreensíveis pela maior parte das pessoas. Sendo o espaço da subjetividade, a arte também tem a capacidade de iluminar o que às vezes é óbvio e lógico, mas segue não sendo enxergado pelo rigor da objetividade – às vezes, porque essa objetividade é um álibi para a omissão deliberada ou para a cegueira negligente.

img_20170107_153910257Pensei nisso enquanto lia o Atlântico, de Ronaldo Correia de Brito. Texto curto (quase um conto) publicado pela Mariposa Cartonera, teve tiragem inicial de apenas 50 exemplares, assinados pelo autor. Independente de sua extensão, foi finalista do último Prêmio Oceanos na categoria Romance e entrou para a lista de melhores leituras de 2016 aqui do Lombada Quadrada. A capacidade de captar o espírito do tempo por trás de um fato amplamente conhecido é o grande feito desse texto, inspirado em um crime rumoroso ocorrido em Pernambuco mais de 15 anos atrás.

Em maio de 2003, duas adolescentes de classe média alta desapareceram após um passeio de lancha na praia de Maracaípe, vizinha à de Porto de Galinhas. Elas tinham ido passar o fim de semana na casa de um amigo em Serrambi, junto com vários outros jovens. Se desencontraram dos amigos e tentaram voltar pra casa no começo da noite, de kombi lotação. Nunca mais foram vistas. Após 10 dias sem notícias, o pai de uma delas resolveu procurá-las por conta própria. Encontrou os corpos jogados numa estrada de terra no meio de um canavial.

Motorista e cobrador da kombi foram logo identificados, mas o crime já havia captado a imaginação popular e a sanha da imprensa de um jeito absolutamente nefasto. Entre a atuação atrapalhada da polícia, a obtusidade do promotor de Justiça e a vontade de vender jornais, várias teorias da conspiração tomaram corpo e foram alimentadas pela mídia. Em uma das versões fantasiosas, as meninas teriam sido mortas pelo pai que as achou no canavial, porque a amiga da filha estaria grávida dele. Em outra, mais popular, uma das meninas teria morrido de overdose numa festinha na casa dos amigos que as hospedavam; a outra teria sido morta como queima de arquivo.

Atlântico aborda o crime lateralmente. Transformado em Caso Guadalupe (em alusão ao Caso Serrambi, como o episódio ficou conhecido), o fato surge como discussão nas aulas de história de Cecília, a personagem principal. Ela precisa escrever um trabalho escolar sobre o crime e pensa sobre ele enquanto vagueia pelo Recife. Nessas andanças, observa uma periferia marcada pelo Rio Capibaribe; vê bairros cujos nomes aludem aos efeitos da água sobre a cidade (Areias, Barro, Várzea). Quanto mais periférica a localidade, maior o efeito do rio sobre ela. É palpável a referência a Cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto.

Por isso, o Capibaribe aparece também como expressão geográfica da segregação social que continua firme mesmo quando os ricos e poderosos não são nem mais tão ricos nem mais tão poderosos assim. Nesse aspecto, é impossível não lembrar de O som ao redor, filme de Kleber Mendonça Filho, também uma crítica a esse passado patriarcal que teima em sobreviver na conformação urbana contemporânea. É antológica a cena em que dois catadores de lixo assistem a uma corrida de cavalos por entre as grades do clube de hipismo. Apostam a dinheiro da mesma forma que os sócios do clube lá dentro, em suas vestes de luxo. Brigam entre si os de lá de dentro como os de fora, igualmente, apesar da cerca.

O canavial, assim como o Rio, é também um locus essencial para se entender Atlântico. O embate velado entre os valores decadentes dos antigos senhores de engenho e o poder dos novos ricos continua dirigindo os rumos da cidade e a vida de seus habitantes, assim como as relações de gênero e o exercício desse poder por meio da violência.

O livro explora o arranjo de coisas que fez surgir a teoria de que as jovens teriam sido mortas pelos próprios amigos. Elas, as filhas da classe rural decadente, deixadas para um fim de semana sem adultos com os amigos ricos, numa praia da qual a população local vem sendo gradativamente expulsa pela ocupação desordenada e insustentável de resorts, mansões e empreendimentos econômicos das mais variadas natureza. Os filhinhos ricos, portanto, não têm limites de qualquer natureza e são olhados com rancor pelos antigos caiçaras. A violência latente é palpável.

São todos ribeirinhos, uns ricos e outros pobres. Tornou-se bem menor a diferença entre eles, o espaço que os separa. A pobreza se expandiu, ganhou o centro e a periferia, brada, faz arruaças. Os velhos empobrecidos mal saem de suas cadeiras, onde descansam. Talvez do cansaço de nunca haver trabalhado, do fastio de tanto fornicar com as mulheres em que botavam os olhos, mulheres consideradas suas por direito de classe.

Essa violência, que é também consequência da forma de ocupação urbana, e que tem entre suas expressões o machismo e a misoginia, são tão essenciais para se entender o Caso Guadalupe/Serrambi quanto as motivações pessoais de quem efetivamente praticou o crime. Questões que nunca foram sequer resvaladas pela imprensa, perdida que ficou numa guerra de furos sobre boatos. Contaminada  a opinião pública e fragilizado o sistema de justiça – inclusive por projetos pessoais de autoridades ligadas à investigação -, o desfecho dessa história real ficou inviabilizado, provavelmente para sempre.

Atlântico também não tem um desfecho claro. Mas coube a ela – à literatura – catalizar tudo isso numa visão macroscópica e ainda assim peculiar sobre o ambiente que proporcionou um crime dessa natureza. Com o perdão do clichê, sou obrigada a citar Ferreira Gullar: a arte existe porque a vida não basta.

PS: A tela que ilustra esse post é de Gilberto Freyre – ele mesmo -, autor de Casa Grande & Senzala. Foi fotografada em exposição sobre o autor no Centro Cultural da Caixa Econômica em São Paulo.

9 comentários sobre “Casa Grande & criminalidade

  1. Belo texto, Renata, estou emocionado. Obrigado pelo seu olhar agudo.
    Um comentário: Atlântico é bem anterior a O som ao redor, o filme de Kleber Mendonça que tanto aprecio. Escrevi essa novela/conto muito antes. Como cidadão pernambucano, sentia-me responsável pelo crime. Ele doía em mim como ferida. Mas, cadê a coragem de publicá-lo? Aí surgiu a provocação da Mariposa Cartonera e eu fui. O mesmo aconteceu com o meu conto Homem sapo, sobre o assassinato de Pasolini, que saiu no livro Retratos imorais, anos depois de ser escrito.

    Curtido por 2 pessoas

Deixe um comentário