6 temas que fazem dos romances de Elena Ferrante uma síntese do século XX

 

2017-05-29 10.19.49O blog volta a Elena Ferrante. Publiquei aqui e Renata aqui impressões sobre a misteriosa escritora italiana que vem arrebatando multidões de leitores com sua tetralogia napolita, que finalmente chegou ao fim entre nós com a publicação do quarto volume da série pelo selo Biblioteca Azul, da Editora Globo. Como ambos dissemos, ler Elena Ferrante é fácil. E pode ser complexo. Depende da disposição do leitor. Quem vai pelo fio da história, se emociona com os percalços da vida de duas meninas que nascem em um bairro periférico de Nápoles. Uma ganha o mundo. Outra, jamais sai da cidade. Mas ambas têm suas vidas ligadas por décadas de encontros, silêncios e reencontros. E quem quer ir além, encontra nos quatro volumes camadas profundas para refletir sobre política, feminismo, costumes, corrupção, violência, crime organizado e muitos outros temas que se escondem nas entrelinhas.

Com a leitura completa, ouso apontar seis linhas temáticas que me parecem fazer da história da amizade entre Elena Greco e Lina Cerullo uma síntese do século XX. A saga começa nos anos 1940 e termina já em pleno século XXI, como um fecho de uma era.

  • Anonimato: na era das redes sociais, dos vazamentos de notícias, das imagens privadas escancaradas para o deleite da turba, é incrível que não saibamos com certeza quem é a autora da tetralogia. Embora tudo aponte para uma tradutora, nada se confirma, nada vaza da editora que publicou originalmente os livros. O primeiro tema da série parece advir da grande brincadeira feita pela pessoa que traçou as milhares de linhas que encantam leitores em todo o planeta. É a âncora no século XX, uma era em que anonimato tinha valor. É só pensar no sigilo dos guias de gastronomia, cujos avaliadores jamais conhecíamos. Sem contar a profusão de serviços secretos e espiões que realmente estavam ocultos sob falsas identidades. Depois de Wikileaks e afins, parece que muito pouco há a preservar da intimidade de pessoas, organizações e governos. Que o diga o presidente que ainda dá plantão no Palácio do Planalto.
  • Evolução dos costumes: nascidas em um bairro preso a preceitos religiosos e morais ditados por padres e pelo jogo das aparências, Lenu e Lina romperam com a ideia de casamento indissolúvel e de virgindade antes do matrimônio. Não sem provar nefastas consequências de seus atos. Ao longo da série vamos conhecendo as tramas que envolvem casos extraconjugais, descoberta dolorosa da homossexualidade, o choque entre uma Itália profunda e conservadora da periferia e das pequenas cidades e a Itália moderna dos redutos acadêmicos e da vanguarda política.
  • Feminismo: Elena Greco torna-se uma autora de sucesso abordando o tema da emancipação da mulher. A luta pela igualdade de direitos faz parte da revolução de costumes que vimos acima. Mas a trajetória de Lenu é um capítulo à parte dessa revolução. Ela simboliza o que foi o movimento feminista ao longo do século XX. Para Greco, lidar com casamento, filhos, família e as dificuldades para se impor no ambiente de trabalho foi o centro de suas angústias. Obstáculos poderosos entraram em seu caminho. Renúncia, dor, preconceito e necessidade constante de afirmação contrastam em todos os quatro livros com a facilidade com que os homens de sua vida seguem um fluxo natural de carreira e relacionamentos livres de barreiras.
  • Política: a política italiana aparece com força. Especialmente a partir do segundo livro, quando Lenu entra na vida adulta. Em meio a um país dividido, assistimos a um cenário constante de violência e instabilidade. É um tempo em que governos italianos não duravam mais do que poucos meses, o que faz até parecer que o romance se passa no Brasil de hoje. Mas estamos na Itália que vive parte do século passado à beira do caos, envolta em atentados terroristas, escândalos de corrupção que não poupam partidos e correntes políticas de qualquer espectro. Nas universidades, ambiente em que Elena convive, a política está presente nas indicações de professores que gozam da proteção de “grandes” intelectuais. No mercado editorial, o jogo de influências dita quem vai ter livros publicados. E, no bairro de Nápoles, aparece o lado brutal de uma política dominada por interesses do submundo do crime organizado. 
  • Violência, assassinatos, máfia: à medida que a narrativa avança, Lenu e Lina se tornam adultas e começam a entender o contexto de seu bairro. E descobrem que parte dos amigos de infância dividem-se em dois grupos. O grupo dos excluídos tem aqueles que mergulham nos movimentos operários e, dali, migram para a resistência armada, adotando práticas que passam pelo assassinato de desafetos políticos e pelo terrorismo. No romance, o atentado na estação de Bolonha e o sequestro do primeiro-ministro Aldo Moro, dois fatos marcantes da política do século XX, aparecem como pano de fundo para esse envolvimento de amigos das meninas em ações armadas. O outro grupo é daqueles que já dominavam o bairro pelo poderio econômico de seus pais. Os irmãos Solara aparecem como símbolo de uma política que se alia à Camorra, a máfia napolitana, para eleger políticos, controlar o comércio e ditar as normas da comunidade. Os métodos? Assassinatos, intimidação, compra da subserviência daqueles que não querem complicações para viver sua pacata vida de bairro. 
  • Tecnologia: do primeiro manuscrito de Lina, chamado à Fada Azul, até o último livro de Elena, escrito em computador, há uma camada da narrativa que começa sutil e vai se tornando importante. A revolução tecnológica está presente em todos os quatro títulos da saga. Da falta de acesso ao telefone, passando pelos meios de transporte cada vez mais rápidos, à chegada dos primeiros computadores e softwares que mudam a vida de Lina e Enzo, e à troca de e-mails e mensagens por celular. As meninas começam analógicas e terminam a saga já digitais. 

Muitos outros aspectos e leituras podem ser extraídos das mais de 1.200 páginas que compõem a tetralogia. Deixo a quem chegou até este ponto do texto o desafio de relatar suas impressões. Portanto, comentem, discutam, divirjam. E, para quem ainda não começou a saga, garanto que Lenu e Lina vão conquistar sua atenção. Basta começar a ler.

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13 comentários sobre “6 temas que fazem dos romances de Elena Ferrante uma síntese do século XX

  1. Gostei tanto, que como o terceiro ainda não tinha chegado, tive sorte de alguém estar voltando de Portugal e me trazer o terceiro e o quarto volume, que foram igualmente devorados. Considero Helena Ferranti uma das mais importantes vozes da literatura atual. Ha uns meses atras foi noticiado que haviam descoberto a identidade de Helena Ferranti, o que absolutamente nao vem ao caso e nada acrescenta a sua obra. E se ela nao queria se apresentar,
    que fosse respeitado seu desejo. Brilhante o comentário sobre essa maravilha que é A amiga genial. Depois disso já li dois outros livros da autora.

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    1. Obrigado pelo comentário, Denise. De fato, a escrita de Elena Ferrante parece hipnotizar a gente. Acabei a tetralogia e já tenho dois livros dela na fila de leitura. Vou dar um tempo, mas logo mergulho nesses volumes que são bem menores. Quanto à identidade, é claro que queremos conhecer a autora. Faz parte da curiosidade, de dar um rosto a quem escreveu essa maravilha. É preciso reconhecer que esse anonimato é muito engenhoso e ajudou a promover a obra.

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