As ondas de Virginia Woolf

A obra de Virginia Woolf entrou em minha vida de leitor recentemente, depois de Renata ter lido Mrs. Dalloway, romance incrível, que está resenhado aqui. Os suspiros, comentários e o modo com ela devorou o livro me deixaram curioso e, enfim, também mergulhei no relato do dia tumultuado da senhora Dalloway, escrito em um jorro de potência literária e envolvimento do leitor no fluxo de consciência que vai passando de personagem para personagem.

Demorei alguns meses para encarar  a segunda incursão na obra de Woolf, meio que adiando um prazer que eu tinha certeza de que viria. E que prazer!

Escolhi As ondas, em edição para Kindle, de forma aleatória. Não tinha informação prévia sobre o livro e evitei alguns dos título mais conhecidos da inglesa. E, embora até o momento já tenha lido três de seus romances, arrisco a dizer que esse é obra-prima, daquelas experiências que colocam a narrativa entre os meus livros de cabeceira, para sempre.

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No romance, Virginia nos apresenta a seis amigos de infância. Três mulheres e três homens. Entre eles, Percival um onipresente amigo que jamais se pronuncia, mas está sempre nos pensamentos de todos os amigos.

O romance vai se alternando entre descrições belíssimas e clássicas de fenômenos da natureza, falando da paisagem, do clima e da topografia em uma sequência que vai da primavera ao inverno. A cada estação, uma etapa da vida dos amigos. A infância na primavera até o ocaso invernal. Parece meio obvio, quase um clichê. Mas é o formato da narrativa que arrebata o leitor.

Bernard, Neville, Jinny, Louis, Rhoda e Susan são colegas de infância, amigos da mesma escola, crescem e se encontram nas festas da aristocracia inglesa, viajam pelo mundo colonial do império Britânico, sofrem perdas, encontram amores, brigam, se afastam, voltam a se encontrar.

A narrativa vem em ondas de diálogos que obrigam o leitor a não perder o fio da meada. As mudanças de voz de um personagem para outro são muitas vezes sutis. E, como as ondas do mar, os fluxos narrativos vão e vem, puxam e repuxam e muitas vezes nos fazem tomar um caldo e cair em meio à espuma borbulhante de uma onda mais forte, obrigando-nos a uma recomposição rápida para poder seguir a história dos amigos e entender a teia de relações de uma sociedade que entra no século XX ainda presa aos jogos de aparências da tradição e da sisudez do período Vitoriano.

Este trecho, mostra a força das ondas narrativas e a como a paisagem, no caso a Londres que deixa de ser uma cidade pacata e é tomada pelos automóveis e pela fuligem, é também personagem do romance:

“Londres se desintegra. Londres cresce e decresce, eriçada de chaminés e torres. Aqui, uma igreja branca; ali, um mastro entre espirais. Aqui, um canal. Agora, espaços abertos com caminhos asfaltados sobre os quais é estranho que haja pessoas andando. Há uma colina estriada de casas vermelhas. Um homem atravessa uma ponte com um cão nos calcanhares.”

Virginia monta um mosaico que compõe um retrato finamente sarcástico da sociedade inglesa do fim do século XIX e dos primeiros anos do século XX. E lança luzes sobre o lugar da mulher em um tempo no qual ainda se lutava por direito básicos, como o sufrágio e abertura do mercado de trabalho. Compõe personagens femininas marcantes. Entre a frivolidade e a independência intelectual, as mulheres do romance são um espelho do que acontecia na Londres daqueles anos.

Também é genial perceber como a passagem de tempo vai alterando a narrativa, que passa do tom naïf da infância e da adolescência e vai ganhando corpo e consistência à medida em que os amigos vão crescendo. Na idade adulta e no ocaso, o sarcasmo e o pessimismo substituem os arroubos juvenis e a esperança de dias melhores. Quem leu a Série Napolitana, de Elena Ferrante, talvez imagine, como eu, que a autora italiana narrou a vida de Lenu e Lina com inspiração em As ondas.

E qual o ponto de contato, o elo que mantém esses amigos tão próximos ao longo de seis décadas de narrativa? Trata-se da figura oculta de Percival, um misterioso amigo que está sempre por chegar aos encontros. Nunca vem. Mas é em torno de sua vida e morte que é ponto marcante de inflexão na vida do grupo.

Em um dos encontros, em um pub, a porta se abre e Neville diz:

“É Percival? Não, não é Percival”. Há um prazer mórbido em dizer: “Não é Percival”. Vi a porta abrir e fechar vinte vezes; a cada vez, a tensão aumenta. Este é o lugar onde ele vem. Esta é a mesa à qual se sentará. Aqui, por incrível que pareça, estará seu corpo verdadeiro. Esta mesa, estas cadeiras, este vaso de metal com suas três flores vermelhas estão prestes a passar por uma transformação extraordinária. O aposento, com suas portas giratórias, mesas cobertas de grutas e pernil frio, assume a aparência ondulante e irreal de um lugar onde se espera que algo aconteça.”

A força dessa onipresença marca o romance e as relações. A vida vai seguindo seu fluxo e a certa altura uma frase Bernard, que diz“ter consciência de nossa passagem efêmera”, é como que em um resumo do que o livro representa. Uma narrativa alucinante do efêmero da vida.

As ondas é um monumento à literatura. Um livro que deve ser lido, saboreado, relido e colocado na cabeceira. Talvez tenha sido um dos romances de que mais tomei notas de frases, pensamentos e passagens inteiras que são pura poesia.

E se muitos romances têm aberturas de tirar o fôlego, como A metamorfose ou Cem anos de solidão, Virginia termina o essa obra prima com uma única, sintética, poética e definitiva frase:

“As ondas quebraram na praia”

A edição da Novo Século para Kindle tem excelente tradução de Lya Luft, prefácio de Antonio Bivar, que integra o The Virginia Woolf Society of Great Britain. Mas tem problemas sérios de encavalamento das palavras que precisa ser corrigido com urgência.

Leia Virginia. Leia Mulheres.

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