Cartas da prisão domiciliar

A casa é a prisão domiciliar de milhões e milhões de mulheres. Esta pode ser a tradução mais exata de uma expressão que entrou na moda com as espetaculares e espetaculosas operações e detenções da Polícia Federal brasileira nos últimos anos. Mas, se para os empresários e políticos envolvidos no mar de lama da corrupção a perspectiva de uma prisão domiciliar é alentadora, para as esposas, a casa pode ser o espaço de um encarceramento cruel.

Curiosamente, engatei nas últimas semanas a leitura de cinco romances de escritoras que revelam a face sufocante e assustadora do papel da mulher como dona de casa, submissa ao marido e escrava das tarefas domésticas, da educação das crianças, da necessidade permanente de se manter atraente, sem no entanto soltar demais suas asinhas.

Li neste período o romance do século XIX, O papel de parede amarelo, de Charlotte Perkins Gilman; do começo do século XX a leitura foi de Ao farol, de Virginia Woolf; em seguida, li outros dois títulos escritos já neste século: o excelente Dias de abandono, da escritora-magia Elena Ferrante, e A loucura dos outros, livro de contos da brasileira Nara Vidal.

Em uma linha do tempo de mais de 150 anos, a presença do marido opressor, o papel da mulher relegado a segundo plano, a ideia recorrente de que elas não podem ser escritoras, não podem trabalhar, nem ter autonomia e jamais podem pensar em abandonar os filhos estão presentes com força em todas as narrativas, o que mostra que a questão de igualdade de gênero não é um modismo, não é uma onda passageira, é uma pauta que deveria ser central na luta por uma sociedade menos injusta e menos desigual.

2018-01-27 13.09.07Se você leu até aqui, já percebeu que citei apenas quatro livros. Pois o quinto, que é o verdadeiro objeto desta resenha, é o romance da chilena Diamela Eltit, Los vigilantes.

Comprei esse livro na impressionante El Ateneo, em Buenos Aires, no escuro. Mas logo descobri que Eltit é uma veterana, respeitada por público e crítica, referência da luta contra a ditadura de Pinochet e ativista da causa feminista. Levei uma sucessão incrível de socos no estômago na leitura desse romance epistolar.

Sim! Um romance epistolar, matéria rara e arriscada na literatura. E, de certa forma, fadada a ser uma fórmula fácil se não sair da pena de uma grande escritora ou de um ótimo escritor. Na minha lembrança, o outro romance epistolar que li e me impressionou foi Caixa preta, de Amós Oz, também este um livro repleto de porradas na cara do leitor. E, no formato, muito semelhante a Los vigilantes.

Antes de começar a disparar as epístolas,  o livro se inicia por um capítulo em que acompanhamos o fluxo de pensamento do filho da autora das cartas do romance. E ele já adianta:

“Mamá escribe. Mamá es la única que escribe.”

Sim, sua mãe é a única que vai escrever em todo o romance. A série de cartas disparadas pela mulher, recém separada, tem um único destinatário: o ex-marido. E nenhuma resposta. O tempo todo estamos diante das palavras às vezes vociferadas, outras tantas vomitadas, e, em outras ocasiões, escritas com a maior delicadeza possível.

Não lemos as cartas do homem, mas é fácil atar os fios soltos ao fim de cada carta com o começo da seguinte e assim vamos também entendendo como age esse sujeito oculto por detrás das missivas.

À medida que o livro avança sobe o tom de desespero e fica claro o isolamento da mulher na prisão domiciliar cotidiana. Acompanhamos a intrusão crescente de sua ex-sogra na casa onde ela vive com o filho. Entendemos que o menino tem problemas cognitivos sérios e também sabemos que a cidade onde se passa a ação está sob forte e crescente intervenção de forças paramilitares que matam moradores de rua, impõem severos toques de recolher e vigiam a “moral e os bons costumes” dos cidadãos “de bem”.

Acusada de negligência na educação do filho, a mulher se vê enredada nas teias dominadoras de um homem que é ausente como pai, foi ausente como marido, mas que zela por sua reputação, impondo à ex-mulher padrões de comportamento que considera “corretos” e lhe fazendo ameaças judiciais e físicas quando esta comete atos de rebeldia. Sempre tendo a criança como o refém de um sequestro sem pedido de resgate.

Los vigilantes é um romance de resistência pela palavra. A certa altura, a mulher começa uma das cartas afirmando que “Sólo lo escrito puede permanecer”. E em vários outros momentos ela tenta dar à palavra escrita o status de peça fundamental para enfrentar a onda de patriotismo e conservadorismo que varre a cidade, afeta seu dia, faz sumir os mendigos, e provoca a morte dos miseráveis. Sem, no entanto, deixar de denunciar o poder despótico e encarcerador que o machismo exerce nessa engrenagem. Como se também dissesse ao movimentos de resistência que estes jamais deveriam tratar como secundária a questão de igualdade de gênero.

O livro é sufocante e triste em seu desfecho. Mas é também uma elegia à literatura como a arte da expressão de ideias, revolucionária por natureza.

A edição que li, em espanhol, é da coleção Biblioteca Breve do selo catalão Seix Barral, publicada na Argentina. Não há traduções para o português, mas é possível encomendar em boas livrarias ou pela Amazon. Este, aliás, é um aspecto triste de nossa pobre América Latina. Com honrosas exceções daqueles autores que ganham a benção da crítica europeia ou entram no mercado dos Estados Unidos vivemos condenados a não conhecer o que de melhor se faz na literatura contemporânea do nosso subcontinente, mais sub do que nunca.

 

P.S.: a foto que ilustra o post é de uma das obras da exposição do argentino Julio Le Parc que esteve em cartaz no Instituto Tomie Othake, em São Paulo.

 

Página Los vigilantes

 

 

P.S. 2: o livro é marcado por centenas de palavras ou letras isoladas que são impressas em cinza, como na que abre o romance. Como se fossem falhas da tinta da caneta usada para escrever as cartas. E como se dessem ênfase a alguma expressões. Um toque sutil de design gráfico em um projeto bem careta.

 

8 comentários sobre “Cartas da prisão domiciliar

  1. tô há tempos querendo ler a Eltit. já ia perguntar onde você comprou, pero, Buenos Aires… yo no tengo dinero, rsrs.

    e agora, depois desse texto maravilhoso, fiquei ainda mais na vontade!

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    1. Obrigado pelo comentário. Que bom que gostou do texto. A Amazon tem alguns livros de Eltit disponíveis. Há uma edição de Los Vigilantes, mas não disponível para entregas no Brasil. Se tiver contato com uma boa livraria, dessas que arrumam a vida dos leitores, acho que consegue encomendar.

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