Se fosse possível marcar um livro todo, como uma grande frase, cujo efeito sobre mim eu quisesse perpetuar, este livro seria Cadernos de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo. Para começar a falar dessa pequena maravilha, preciso confessar algo. Roubei a leitura e o post que deveriam ser de Renata. Afinal, foi ela quem me chamou atenção para o livro, que encomendamos na Livraria da Vila, com grande expectativa. Como estava às voltas com outra leitura, pulei o lugar na fila e fui em frente.20180805_085644[1]

Voltando ao começo da conversa, não é possível marcar o livro todo. Não seria razoável. Mas foram muitas as marcas e anotações na leitura que fiz em poucas horas, já com a certeza de que em algum momento haverá uma releitura.

Isabela, nascida em Moçambique, mudou-se para Portugal em 1975. Ela é uma retornada.

Para quem não está familiarizado com a história recente de nossa antiga matriz, cabe o contexto. Com a derrubada do regime salazarista, em 1974, a Revolução dos Cravos também foi responsável pelo fim da aventura colonial portuguesa em terras africanas. Cabo Verde, Angola e Moçambique enfim libertaram-se, naqueles anos, do julgo. Revoluções, golpes militares, guerras civis. Aconteceu de tudo nesses países a partir do derretimento da ditadura em solo lusitano.

E Isabela, branca, filha de portugueses, era em Moçambique uma legítima representante do poder colonial, embora sua família fosse pequeno-burguesa e o pai dono de um pouco rentável negócio de instalações elétricas. Fuzilamentos, perseguições, fugas e expulsões foram portanto destinos naturais dos representantes da metrópole, depois de séculos de domínio e exploração de riquezas e segregação em plena África negra.

Os colonizadores, de repente, voltaram a Portugal, aos milhares, muitos dos quais carregando riquezas, mas, em sua maioria, com mãos vazias, desprovidos seus bens, expropriados em território africano.  E não foram para o paraíso. Portugal passava por momentos turbulentos. Crise econômica e política, na difícil construção da democracia, algo que o país jamais vivenciara de fato. Imagine, então, como estes seres eram vistos. Eram os retornados, párias. Nem portugueses, nem tampouco africanos. Pessoas sem lugar.

E é assim que Isabela derrama sobre as páginas do livro a sua história. A narrativa de uma pessoa sem lugar. Nascida em uma cidade que se chamava Lourenço Marques, era também desnaturada, já que a partir da independência sua terra natal passou a ser conhecida como Maputo, nome africano, a apagar a memória do passado imperial.

A obra de Isabela Figueiredo é um acerto de contas com o pai. De modo lancinante, com um texto cru, sem meias palavras, se põe a falar de tudo que a memória trazia de seus primeiros doze anos, vividos sob o sol forte de Moçambique. Isabela faz um retrato cruel, e ao mesmo tempo apaixonado, da figura paterna. Ele é o símbolo do colonialismo em sua face mais perniciosa. O uso sexual e violento do corpo das mulheres negras, a exploração do trabalho dos homens, o racismo explícito e a segregação aos moldes do apartheid da vizinha África do Sul. Coisas que são pouco abordadas pelos autores portugueses, sempre a ver na experiência colonial um congraçamento de raças. Não foi isso, como nos revela a autora. Bairros separados, clubes e escolas exclusivos para brancos, transporte segregado. E, principalmente, a violência cotidiana, nas pequenas coisas, nos gestos e nas relações, sempre marcadas por uma sexualidade intensa e degradante, claro, para as mulheres.

O pai de Isabela, um sujeito beberrão, cuja barriga proeminente é uma marca de distinção diante daqueles milhares de negros magros, é, aos olhos da Isabela adulta, o colonizador por excelência. Mesmo não pertencendo à alta elite, a família tem seus privilégios, os negócios do pai permitem uma vida confortável, tudo vai bem, até que…

Chegam os ecos da guerra civil. Ao cair o governo de Caetano, o fim do regime salazarista torna-se a senha para a rebelião. E, como nas cenas de À espera dos bárbaros, de Coetzee (olha a África do Sul aí, gente!), Isabela recorda como os ruídos da turba alucinada e com sede de justiça e vingança rondaram sua casa. Por milagre, e pela teia de relações do pai, a família escapou da degola. Pai e mãe sobreviveram por algum tempo em solo africano, mas pagaram fortunas em propinas para agentes do novo governo. Mandaram então a menina Isabela para Lisboa, a morar na casa da avó, que até então jamais conhecera.

Começa aí o relato do desterro, do deslocamento. Em Portugal, sem amigos, com parentes envelhecidos e desconhecidos, ela sente o peso de ser vista como, também ela, colonizadora.

Os capítulos curtos do livro são também precisos na escolha das palavras. Sem receio algum de chocar leitores, Figueiredo expõe as feridas nunca cicatrizadas de um passado sobre o qual sente culpa, embora também seja vítima.

Das lembranças de Moçambique, as cores das capulanas, o cheiro das frutas, o calor intenso. E a descoberta da sexualidade nos corpos dos vizinhos, negros, com quem a menina brincava, a despeito da proibição dos pais.

É na relação com esse pai-colonizador que reside a grande contradição de tê-lo amado. E de ter sido sempre preparada por ele para não depender de homem algum, conselho que sempre repetia, malgrado todo o machismo que carregava em suas atitudes. Isabela faz neste lindo livro um acerto de contas, uma carta ao pai, para poder entender o que foi seu passado, expiar as culpas e seguir sua vida.

Publicado em 2009 em Portugal, Cadernos de memórias coloniais fez grande sucesso, provocou polêmica e intenso debate. Chegou tardiamente ao Brasil, em edição deste ano, caprichada, da Todavia.

Ah. Não trouxe para cá nenhuma das muitas frases incríveis que anotei. É para que você escolha as suas e se encante com elas.

Este é um livro de cabeceira.

 

P.S.: a foto em destaque é um recorte da tela Harlem, de Benny Andrews, que está exposta no Masp, na belíssima exposição “Histórias Afro-Atlânticas”

6 comentários sobre “Carta ao pai

  1. Acabei de ler A Gorda, leiam.
    Uma gostosa surpresa na literatura portuguesa. Cada vez mais fã dos retornados.
    Bia Henriques

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