A vida secreta das cangaceiras

Eu sei que vai parecer deja-vù, porque comecei exatamente assim meu último post, mas que culpa tenho? Os livros têm uma uma forma misteriosa e quase viva de se conectar nas bibliotecas e na cabeça dos leitores. Então, com o perdão do repeteco, lá vamos nós outra vez:

A coisa mais preciosa que aprendi no meu curso inconcluso de História é que esta ciência nos conta muito mais sobre o presente do que sobre o passado. Se os fatos pretéritos não mudam, nossa interpretação sobre eles está em constante transformação, sempre à luz do que vivemos na atualidade. Por isso, não é de se espantar o surgimento de trabalhos contemporâneos, ficcionais ou não, que vêm revisitando narrativas históricas sob o ponto de vista de quem estava até agora invisível.

A jornalista Adriana Negreiros faz isso em seu livro de estreia, Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço, lançado recentemente pela Companhia das Letras. Embora a vida e a morte dos bandoleiros do sertão nordestino tenha sido amplamente documentada e midiatizada enquanto eles ainda estavam em plena atividade, pouco se dizia sobre a situação das mulheres envolvidas no cangaço, seja como bandoleiras, seja como sertanejas à mercê do banditismo – via de regra, vítimas tanto num quanto noutro  caso.

Maria era uma exceção absoluta. Não apenas foi a primeira cangaceira como escolheu ser uma: botou na veneta que conquistaria Lampião e lá se foi, abandonando um casamento para virar primeira-dama do cangaço. Só depois de estabelecer o próprio casamento Virgulino Ferreira permitiu aos seus subordinados que também tivessem mulheres. Eles, então, passaram a eleger parceiras da forma mais simples e direta que conheciam – raptando-as. Foi assim com Dadá, sequestrada e estuprada por Corisco aos doze anos, quando ainda brincava de bonecas; e com Sila, que contava onze anos quando foi escolhida como esposa por Zé Sereno.

Assim como Laurentino Gomes e sua série de best sellers sobre história do Brasil (1808, 1822 e 1889) Adriana Negreiros basicamente reordena informações de livros e pesquisas já publicadas anteriormente, além de reportagens na imprensa da época. Não há uma investigação em novas fontes, mas uma reinterpretação do que já é amplamente conhecido, o que também acaba servindo como uma revisão crítica sobre essa literatura anterior. Como a própria autora esclarece no posfácio, as publicações sobre o cangaço costumavam estereotipar e desacreditar a fala das mulheres. Dadá, por exemplo, foi taxada de “exagerada” ao falar de Corisco; já Sila teria ido com Zé Baiano “porque quis”.

Assim, Adriana Negreiros reconstrói uma narrativa do banditismo a partir da ingrata posição feminina no sertão nordestino dos anos 1930 a partir das poucas informações existentes sobre Maria, Dadá, Sila, Enedina, Jovina, Nenê, Durvinha, Adília, Inacinha, Cristina, Joana e várias outras cangaceiras. A escassez torna inevitável uma ainda enorme preponderância masculina na narrativa, em especial nas figuras de Lampião, Corisco, Zé Baiano e de seus algozes – mas claro, e sempre que possível, relacionando-os com o universo feminino que existia quase silencioso entre os mandacarus.

Só as histórias de maternidades interrompidas valia um livro à parte: grávidas ainda adolescentes e obrigadas a cruzar o sertão a pé com suas barrigas, as cangaceiras estavam fadadas a perder seus filhos – seja para a morte logo após o nascimento, seja por decisão dos maridos, pra quem bebês eram um estorvo. As crianças eram mandadas embora para serem criadas por padres, promotores e delegados, o que revela a complexidade das estruturas que sustentaram o cangaço por toda a década. Os bebês seguiam com bilhetes escritos à mão pelos pais, pedindo que os destinatários cuidassem da educação das crianças – registros fantásticos por si sós:

Ilmo. Exmo. Snr. Revenrendíssimo Vigário Da Igrezia de Santa do Ypanema Bulhanzes desejo que esta va li encontrá gozando perfeita Saude y pás de espírito a si com os que li forem caros. Sinhor Bulhanzes segue em companhia desta carta este menino para u Sr. Criá como seu filho y educá da forma que puder. (…) u pai do menino sou eu capitão Christino Gomes da Silva Cleto conhecido por Curisco. A mai do Menino he Cerja Maria da Conceição conhecida por Dadá. Capitão Curisco chefe de Grupo dus Grandes Cangaceiro. 

O menino acabou se formando economista e, décadas depois, brigou publicamente pelo direito de enterrar as cabeças dos pais. Pois essa é outra característica marcante da história do cangaço, e que perpassa a narrativa feminina em Maria Bonita: era um tempo de completa naturalização da violência, de parte a parte; a predileção de Lampião por fazer sofrer seus inimigos, com mutilações, torturas e estupro de suas mulheres, se espalhava na reação dos policiais, pra quem as cabeças dos cangaceiros eram troféus valiosos, a serem exibidos orgulhosamente em praça pública (a imagem das cabeças do bando de Lampião nas escadarias da prefeitura de Piranhas, que vi criança em um livro, me assombrou por muitos anos).

Esse sertão quase medieval, que era percorrido a pé pelos bandoleiros, em roupas que também carregavam uma estética própria até hoje cultuada no Nordeste, também aflora na narrativa de Adriana Negreiros, inclusive na forma como é descrita a geografia da região. Várias vezes, o texto me remeteu à Terra Média d’O Senhor dos Anéis, clássico da fantasia européia. E vejam só, tínhamos nossa própria Terra Média bem aqui, na caatinga, com uma toponímia absolutamente deliciosa – Grota de Angicos, Raso da Catarina – e explorada à exaustão pela imprensa da época. Muito da mitologia construída em torno de Lampião foi construída pelos jornais do sudeste brasileiro. Ainda que assassinos brutais, não era raro que cangaceiros estrelassem propagandas dos produtos mais diversos.

Maria Bonita é um belo livro sobre o cangaço, fluido e honesto no trato sobre um período conturbado, polêmico e ainda assim (ou por isso mesmo) culturalmente relevante, até hoje, para a cultura nordestina. Tanto que a leitura me estimulou a uma nova experiência aqui no Lombada: vos apresento uma playlist inspirada no livro, com músicas que de alguma forma – às vezes, muito subjetiva – me remetem ao incrível e triste universo das cangaceiras.

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