Banditismo por uma questão de classe

Assassino, ladrão, sequestrador, torturador e estuprador, Lampião foi provavelmente o maior bandido brasileiro de todos os tempos. Que até hoje sua forma de vestir seja considerada sinônimo de Nordeste dá a medida do alcance desta figura, morta há mais de 80 anos, mas ainda tão presente no imaginário nacional. Em novo livro lançado pela Global EditoraApagando o Lampião: vida e morte do Rei do Cangaço – o historiador Frederico Pernambucano de Mello revisita mais uma vez a trajetória de Virgulino Ferreira da Silva e discute como seu talento inato para compreender os mecanismos da comunicação de massa tiveram resultado direto sobre sua mitificação, ainda em vida, e sobre o estabelecimento de sua imortalidade simbólica. Lampião foi pop star e manejava as fake news como ninguém – décadas antes desses termos sequer existirem.

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Frederico Pernambucano de Mello é o maior especialista em cangaço do País, tendo décadas de pesquisas e relatos orais acumulados nas entrevistas que realizou desde a década de 1970 com cangaceiros, coiteiros, donos de terras, soldados e oficiais das volantes, políticos e outros personagens que protagonizaram ou testemunharam o cangaço como fato cotidiano.

É também dono de uma enorme coleção de objetos deixados pelos cangaceiros, sobre os quais tem se debruçado nos últimos 20 anos, e que já resultou no belíssimo (e esgotado) Estrela de couro: a estética do cangaço. Neste novo livro, o seu foco é a vida do expoente maior do banditismo nordestino, tendo como mote a revelação de uma descoberta recente: a da identidade de quem disparou o tiro certeiro que matou Lampião na grota de Angico, na emboscada realizada por volantes alagoanas em 1938.

Mas Apagando o Lampião não é uma biografia de Virgulino. A vida do Rei do Cangaço, aqui, apenas delimita o período de tempo sobre o qual o livro orbitará, analisando as questões sociais, políticas, geográficas e históricas que resultaram na origem e proliferação desta forma específica de banditismo no Nordeste brasileiro, expressa na “indiferença do homem em face da morte” e na “sua insensibilidade no trato com o sangue”, e calcada num vácuo de poder oficial por sua vez provocado pelo isolamento geográfico. Isolamento este também responsável pela manutenção de alguns arcaísmos ibéricos medievais – como o uso do Signo de Salomão no chapéu para dar proteção.

Desta forma, o cangaço é, talvez, o que mais tivemos de armorial, no conceito defendido por Ariano Suassuna. E não deixa de ser armorial a escrita de Frederico Pernambucano de Mello, sempre uma festa exuberante de expressões locais usadas com absoluta naturalidade em meio ao argumento científico – das coisas mais lindas de se ler, e que já tinha feito minha cabeça desde Benjamin Abrahão: entre anjos e cangaceiros. Assim, quando descreve que um determinado cangaceiro levou um tiro no rosto e ficou com um ferimento no pau da venta, o termo aparece sem aspas e sem explicações adicionais. É pau da venta e ponto. Uma evidente forma de resistência e afirmação local: quem decidiu o que é certo e erudito na língua portuguesa certamente esqueceu de consultar os sertanejos nordestinos.

Isso também fica claro nos depoimentos mencionados no livro, todos transcritos ipisis litteris com toda a riqueza das formas de expressão local, não apenas vocabular mas também gramatical e retórica. Ao ter de lançar mão de depoimentos publicados pela imprensa de época, e normatizados para o Português considerado culto, Frederico lamenta justamente a perda desse colorido.

É o contrário do que acontece com outra das grandes fontes de pesquisa do autor – a poesia popular. Em uma região sem imprensa propriamente dita, as rimas compostas como crônicas dos últimos acontecimentos corriam feiras e cidades como veículos de informação e contrainformação, chegando a disseminar notícias falsas para confundir as volantes. E aqui começa a entrar o talento de Lampião como relações públicas de si próprio, tendo ele mesmo chegado a compor poemas para imortalizar os seus feitos, da forma que sabia ser a mais eficiente para chegar aos ouvidos e corações dos jovens sertanejos.

Assassinos sanguinários que fossem, os cangaceiros viviam numa liberdade rara, sendo também sinônimos de coragem, valentia e insurgência. Era menos sobre dinheiro – que eles carregavam por todo o corpo na forma de adereços de ouro, mas de cujas benesses pouco podiam usufruir na caatinga – e muito mais sobre o exercício do poder. O uso de uma estética própria facilmente reconhecível também ganhou a função de seduzir recrutas para os bandos. É muito fácil entender que um menino dos anos 1920 sonhasse em ter seu próprio chapéu de couro com aba quebrada, incrustado de moedas de ouro, e um jogo de bornais ricamente bordado para carregar seus pertences. Frederico especula que Lampião tinha total compreensão desse fenômeno quando se permitiu fotografar e filmar pelo sírio Benjamim Abraão. “A intuição aguda lhe mostrara desde muito que a imprensa aprecia um ícone”, e não é acaso, portanto, que tenha se tornado um mito ainda em vida.

Apagando o Lampião também é uma excelente análise de como o ápice e o declínio do cangaço estão totalmente conectado às relações promíscuas entre bandidos e autoridades, uma diplomacia na qual Virgulino era mestre. Apenas quando há um certo incômodo na opinião pública é que os governos começam efetivamente a se mexer contra Lampião, atacando justamente os mecanismos de corrupção que o protegiam e incentivavam. De certa forma, as engrenagens continuam as mesmas nesse Brasil de 2019.

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