‘O corvo’ traduzido: Pessoa 7 x 1 Machado

Machado de Assis é uma das poucas unanimidades nacionais, em qualquer campo. Dá pra discutir se Pelé foi mesmo o melhor jogador do mundo, se feijão vai embaixo ou em cima do arroz, se é bolacha ou biscoito, mas o posto de maior escritor brasileiro de todos os tempos parece fadado a continuar inexoravelmente atrelado às barbas do Bruxo do Cosme Velho.

Exceto sob um aspecto.

O mesmo autor genial de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e Quincas Borba; o cronista de olhar aguçado sobre a hipocrisia social no Rio de Janeiro do século XIX; o fundador da Academia Brasileira de Letras, nosso maior orgulho literário – basicamente, o rei da p&$#@ toda – leva um chocolate quando o assunto é tradução de poesia – ou pelo menos, de uma especificamente.

Em uma edição incrível, a Companhia das Letras acaba de lançar um volume reunindo o original do poema O corvo, do escritor bostoniano Edgar Allan Poe, e suas traduções por Machado de Assis e pelo poeta português Fernando Pessoa. Se mesmo uma comparação leiga já dava vantagem a Pessoa, a análise do organizador Paulo Henriques Britto não deixa dúvidas sobre quem realmente conseguiu apreender o espírito do poema original.

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O corvo é um dos textos mais conhecidos de Poe, que se notabilizou pelo universo fantástico de sua literatura, especialmente em contos que variam entre misteriosos e abertamente macabros. Até hoje é considerado um dos mestres da literatura de terror. Seu poema não foge ao gênero, jogando com todos os elementos possíveis para criar um clima soturno e envolver o leitor.

Numa noite chuvosa e escura, um jovem está sozinho em casa, tentando estudar, quando ouve batidas lá fora. A princípio acha que é um visitante inesperado, mas não há ninguém à porta; de volta ao quarto, percebe que é um corvo bicando sua janela. Ao abri-la, o bicho voa para dentro e pousa sobre uma escultura da cabeça da deusa Atenas. Fascinado, o jovem começa a fazer perguntas ao corvo, que sempre responde com uma única frase – “nunca mais”. A princípio plácidas, as perguntas vão escalando em morbidez até que o rapaz questiona à ave se um dia conseguirá rever sua amada (já falecida) em outro mundo – “nunca mais“, é a insistente e final resposta.

[Pra quem não sabe, os corvos podem aprender a imitar a voz humana, igual a papagaios, com um tom mais melodioso. Eu não sabia disso até recentemente; sempre achei que o corvo falante nesse texto era só uma licença poética que até aumentaria a dose de mistério da história. Mas nesse ponto Poe foi bastante pragmático e jogou com uma coincidência: apenas por acaso, o corvo que entra no quarto foi ensinado por alguém a dizer nunca mais – uma explicação lógica, mas que não deixa de ter um resultado assustador para o contexto do personagem.]

A edição da Companhia das Letras inclui três ensaios do próprio Poe, sendo que no primeiro deles o escritor esmiúça justamente a composição de O corvo – segundo ele, seguindo um plano deliberado para causar o efeito que queria nos leitores. Determinou o tamanho total do poema de forma a que fosse lido de uma tacada só; versos ritmados e vívidos; um terma universalmente apreciável (a saudade de uma jovem namorada morta) e um refrão escolhido à dedo, repetido exageradamente para que o leitor terminasse cada estrofe sabendo exatamente que palavra esperar ao final – porém, “variando constantemente o pensamento” (ou seja, ao trocar as perguntas, ele também muda o sentido da resposta, mesmo que seja sempre a mesma).

Em seu excelente ensaio, Paulo Henriques Britto demonstra como Fernando Pessoa levou todas estas questões em consideração ao traduzir O corvo para o português, com especial atenção ao ritmo “mecânico e previsível” que o autor americano adotou deliberadamente em sua criação original. “A repetição sistemática e prolongada de um ritmo muito marcado, sobretudo em se tratando de um metro pouco comum, tem um efeito hipnótico sobre o leitor ouvinte”, afirma.

Machado de Assis, por sua vez, parece não ter lá se importado muito com nenhum destes fatores. O efeito de sua tradução lembra apenas a narrativa original composta por Poe, mas o efeito climático que vem do ritmo, a ênfase em algumas ações (a repetição das batidas na porta, que ele simplesmente ignora) e até a forma de divisão dos versos é completamente diferente. Obviamente, ele conhecia de poesia o suficiente para reconhecer a importância de todos esses aspectos. Que diabos aconteceu, então? Preguiça? Ressaca? Um tentativa mal-sucedida de melhorar o poema, implementando uma variação de métrica e ritmo? Sabe-se lá. “O corvo de Machado de Assis é um poema bem-acabado, dentro dos padrões parnasianos que pautam toda a poesia do autor (…)”, mas “não pode ser considerado uma boa tradução, tal como entendemos a expressão”.

Fato é que, a despeito de todas as explicações técnicas do ensaísta e depois do próprio Poe, a tradução de Fernando Pessoa de fato soa melhor aos ouvidos de quem já conhecia o poema original e traz, também, uma imensa sensação de familiaridade. Vamos dar uma olhada só no primeiro verso do original e das traduções (tentei respeitar a distância dos parágrafos em cada verso, o que pode fazer com que os trechos apareçam desconfigurados se você estiver lendo no celular):

ORIGINAL

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore—
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
“’Tis some visitor,” I muttered, “tapping at my chamber door—
Only this and nothing more.”

⊕⊕⊕

TRADUÇÃO DE MACHADO DE ASSIS

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
“É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais.”

⊕⊕⊕

TRADUÇÃO DE FERNANDO PESSOA

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”

Né? Fora que, de onde diabos Machado achou que “à hora, à hora” seria uma boa ideia???

Tanto o ensaio de Paulo Henriques Britto quanto os três de Poe – estes, principalmente – acabam entrando por discussões muito específicas sobre metrificação e podem ser um pouco difíceis para que não está familiarizado com este mundo (meu caso). De toda forma, me trouxe uma compreensão maior das questões estéticas e formais envolvidas na construção de um poema e devem interessar especialmente quem curte entender a estrutura dos textos.

Pra finalizar, é preciso destacar o excelente trabalho da Companhia das Letras nesta edição. Fazia tempo que eu não via um livro não-artesanal tão bem acabado. Capa dura com baixo relevo e impressão prateada, guardas decoradas, monograma com as iniciais de Edgar Allan Poe na primeira página, ilustrações de kakofonia.com entre os capítulos, projeto gráfico de Alceu Chiesorin Nunes e Sarah Bonet (não achei porfolio dela online), além de uma revisão impecável, coisa difícil de encontrar ultimamente. Enfim, redondinho.

Bonus track | Quer ver como soa um corvo dizendo nevermore? Veja este vídeo.

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8 comentários sobre “‘O corvo’ traduzido: Pessoa 7 x 1 Machado

  1. Sinceramente, desculpe dizer, mas ainda fico com Machado. Reconstruiu o poema. E “à hora, à hora” foi um “achado”.
    Gosto é um “cão do diabo”.

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  2. Se Poe pôde escrever “still is sitting, still is sitting”, por que Machado não pode escrever “á hora, à hora”?

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  3. Machado traduziu “O Corvo” de Baudelaire, ou seja, uma tradução de outra tradução e em outro idioma. E as perdas vão se acumulando. O Bruxo, com certeza, não dominava o idioma inglês, já que em sua época a língua fluente era o francês.

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