“Para mim, João Jorge nasceu na noite em que o mataram, nas hortas a caminho da Vila Chã.”
Esse é o começo de Hoje estarás comigo no paraíso, romance do português Bruno Vieira Amaral, publicado recentemente no Brasil pela Companhia das Letras. É arrebatador, conciso, instigante. E essa afirmação vai alimentar a curiosidade do leitor nas 355 páginas de um livro em que o autor usa as histórias de sua família para fazer um percurso de descobertas e expiações. Quase uma grande e pública sessão de terapia em que ele nos convida a refletir sobre violência, pobreza, relações familiares esgarçadas, abandono paterno, sexualidade, política e uma miríade de camadas que vão se descortinando em uma narrativa fluida, não linear, um mosaico de histórias que compõem uma vida.
Bruno Vieira Amaral venceu o prêmio Saramago já com seu romance de estreia. E hoje estarás comigo no paraíso, sua primeira obra publicada no Brasil, foi segunda colocada no prêmio Oceanos, um dos mais destacados nos países de língua portuguesa. E tem muitos méritos para tal premiação.
Amaral puxa o fio da meada de sua história a partir do mistério em torno do assassinato de seu primo João Jorge, em uma manhã de carnaval, quando era criança. O cenário é um bairro pobre nos arredores de Lisboa. As circunstâncias vão sendo reveladas aos poucos. Vamos ficar sabendo que João Jorge tinha passagem pela polícia e que houve em torno de seu violento estripamento uma sucessão de mal entendidos. O escritor busca lembranças desse momento, conversa com familiares, volta à cena do crime anos depois. Encontra a má vontade e a desconfiança de tios e tias, o silêncio de pessoas que estavam no entorno daquela história. Descobre as violentas relações entre portugueses, angolanos, moçambicanos e cabo-verdianos que convivem às turras na periferia, em momentos dos anos 1980 nos quais Portugal estava mergulhado em uma profunda crise econômica e uma escalada de crimes que alimentavam jornais sanguinários. Nesse percurso, Vieira Amaral consulta os autos dos processos em que seu primo esteve envolvido. E reencontra o pai.
Aqui começa um capítulo à parte, pois o jovem Bruno foi criado pela mãe, solteira, abandonada ainda grávida por um homem que saiu pelo mundo em busca de dinheiro. E só foi conhecer o filho quando este já andava pela adolescência. Embora tenham conseguido construir uma relação, fica evidente que esta sempre foi permeada pela sombra do abandono. Pai e filho não se conhecem, não se entendem e jamais serão próximos, repetindo as milhares de histórias semelhantes, um traço tão presente e tão covarde no machismo nosso de cada dia.
O romance é notável por partir de uma história absolutamente pessoal para falar do universal. Que é, afinal, a grande busca da arte, em especial da literatura. Bruno usa sua aldeia para nos tocar a todos e todas. E maneja a linguagem com maestria. São incríveis os diálogos que tem com um veterano jornalista “retornado” de África, um tanto onírico em algum momento, nos deixando em dúvida sobre a real existência da figura. Na maior parte do tempo, a sensação é de que esse senhor Osvaldo Peres, que se dirige sempre a Bruno como “senhor Vieira”, dá vazão às reflexões e descobertas do próprio escritor. Este, por sua vez, em primeira pessoa, dá seus pitacos sobre o exercício da escrita, dividindo com o leitor o próprio processo de criação, suas agruras, as soluções que encontra. Enquanto isso, vamos sabendo mais de Bruno, mais de seu universo, através de sua busca pelas respostas praticamente impossíveis à pergunta: por quê mataram João Jorge?
Foi uma leitura densa, povoada de referências sobre um país que ainda conhecemos pouco, embora esteja cada vez mais próximo de nós. É um período em que Portugal vivia as incertezas da democratização, abalada por condições econômicas ruins e por ataques dos saudosistas da ditadura salazarista. Qualquer semelhança com outro país de língua portuguesa não terá sido mera coincidência. Bruno Vieira Amaral é um autor para seguir de perto.
P.S.: na foto que ilustra o post, em primeiro plano, os telhados de Lisboa. Ao fundo, o “outro lado do Rio” Tejo.
Parabéns pelo blog, sempre com dicas de leitura de qualidade!
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