Nove dias. Esse é o tempo da consumação da vingança de Vicente na trama de O rio de todas as nossas dores, romance de estreia do jornalista João Caetano do Nascimento. A história se passa na periferia da Zona Leste da cidade de São Paulo e começa por um acontecimento de junho de 1972. Um capítulo curto e certeiro narra o violento despejo de centenas de famílias de um loteamento isolado no meio do nada. As casas de alvenaria, ainda em construção, são botadas abaixo por máquinas, sob olhares e ameaças da tropa de choque e, lá do alto, quem se delicia com a ação dos PMs é doutor Fulgêncio, o suposto dono da propriedade. A cena é assistida pelo menino Vicente, acompanhando o desespero de seu pai, que ao tentar resistir é espancado por policiais. O menino também quer reagir, mas leva um tapa violento de um sargento que ri e escarnece daquela gente miserável. No olhar do menino nasce o ódio que motivará toda uma vida construída para a vingança. Ele promete que vai honrar com sangue a dor e o sofrimento causado pelo despejo, carregando consigo a lembrança da tristeza que viu nos olhos de seu pai.
E aí pulamos para a novena de Vicente. Um salto no tempo nos leva ao dia 11 de junho de 2000. Exatos 28 anos depois do despejo. O bairro é a Vila da Alegria, um conjunto de casas pobres que circunda uma fábrica de papel. A paisagem é desoladora, marcada pela fumaça constante das chaminés, o cheiro fétido dos produtos químicos que transformam eucalipto em papel e um rio podre, de águas pretas cortando a vila. Pelas ruas de um lugar que de alegre nada tem, em uma manhã fria, vem chegando um visitante misterioso. É Luís, que se apresenta na única pensão do lugar como pretendente a um posto de trabalho na papeleira.
A pensão é um microcosmo do bairro. Abriga alguns trabalhadores, muitas prostitutas que trabalham em espeluncas da região e um sargento reformado, beberrão e espalhafatoso, de quem todos por ali têm medo. É ele mesmo, o sargento do tapa no garoto. E – não é spoiler – Luís é o garoto Vicente, homem feito, um tipo bonitão, que chega ali para sua novena. Para os nove dias de sua tão sonhada vingança.
Toda essa descrição da trama é para dar a vocês o sabor do que vem pela frente. Durante a narrativa desses nove dias João Caetano vai colocar aos poucos pequenas peças na linha do tempo que separa 1972 desse junho de 2000, preenchendo lacunas como num quebra-cabeças, revelando o que Vicente fez de sua vida, como foram as mortes de seu pai e de sua mãe, como estudou e se preparou para consumar seu plano de banhar de sangue a vida de todos os envolvidos no despejo criminoso. E de como esse banho de sangue começou muito antes da cena final, com atores importantes daquela ação, como o comandante da operação, morrendo em circunstâncias misteriosas.
No caldeirão da Vila da Alegria vai entrando em cena o cotidiano da fábrica, comandada a mão de ferro pelo doutor Fulgêncio. Conhecemos as péssimas condições de trabalho, os conflitos do patrão com o sindicato de trabalhadores e com o movimento dos moradores do bairro para combater a poluição. Uma líder comunitária, ex-secretária de Fulgêncio, aparece na vida de Luís/Vicente, colocando seu plano em risco. Na vingança traçada, se apaixonar por alguém do bairro não era uma hipótese válida. Mas parte de sua estratégia passa por colocar a vila em ebulição e, ao se aproximar de Alice, Luís também consegue colocar fogo no movimento sindical e acender a chama de mobilização dos moradores. Nesse percurso, brotam as contradições das lideranças, as divisões do movimento, os projetos políticos e pessoais de alguns dos atores dessa trama e, no dono da fábrica, a certeza de que seu pequeno império plantado naquele fim de mundo é indestrutível.
Os dias vão se seguindo e partes do plano de Vicente/Luís, começam a funcionar. João Caetano constrói uma rede de suspenses, transitando entre o romance policial e o realismo que faz de O rio de todas as nossas dores um livro político. Existe ali denúncia das mazelas da especulação de terras, da promiscuidade do empresariado e dos militares durante a ditadura, que permanece em tempos de frágil democracia, agora com a conivência também dos burocratas civis e políticos populistas. Crimes cometidos, injustiças perpetradas, vidas destruídas são mostrados. Mas não se enganem. O livro é político, mas não é panfletário. Tem literatura das boas na prosa de João Caetano do Nascimento.
A novena de vingança de Vicente termina em ritmo acelerado, narrando uma sucessão de acontecimentos que começam a destruir o império de doutor Fulgêncio. Muito sangue, uma vila em polvorosa, vidas se transformando.
A construção do personagem Vicente/Luís é bastante engenhosa. Na leitura, vamos simpatizando com um herói que na verdade é também um assassino frio, que calcula seus passos com crueldade, jogando suas vítimas em um jogo psicológico que as leva a mortes trágicas, permitindo que nosso contraditório justiceiro não precise sujar suas mãos de sangue. Revela também uma pessoa solitária, um lobo faminto por vingança, que foge da afetividade, embora tenha por trás de seus planos a cumplicidade de uma mulher misteriosa.
Foi uma bela leitura. Publicado em edição do autor e agora parte do catálogo da recém lançada Lavra Editora, o livro chegou ao Lombada pela oferta do amigo João Caetano, com quem tive o prazer de trabalhar nos longínquos anos 1990, na equipe de comunicação da prefeita Luiza Erundina. A leitura trouxe para mim um universo que conheço. A Zona Leste da cidade de São Paulo e a luta dos movimentos por moradia que acompanhei de perto nos anos 1980, quando participei de um projeto de comunicação ligado aos movimentos populares da periferia.
O rio de todas as nossas dores é um retrato de uma São Paulo que muitos querem esconder.
Agradeço pela atenta leitura desse meu rio morto, onde tentei achar uma fonte viva de esperança. Abraço. Obrigado
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João, foi um prazer poder acompanhar a história de Vicente e da Vila da Alegria. Ao final de cada capítulo, renovava-se a vontade de seguir e a curiosidade com o desfecho que se avizinhava. Parabéns!
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