Os morangos de Caio F.

É difícil escrever sobre contos. Ainda mais quando eles são um clássico, como Morangos mofados, de Caio Fernando de Abreu. Primeiro, porque o texto pode ficar excessivamente descritivo ao pontuarmos os contos preferidos. Seria necessária uma breve explicação de cada trama para contextualizar a leitura que fizemos do livro em geral e dos contos em particular. É um caminho inevitável para se analisar a maioria das obras do gênero, até porque muitas delas não apresentam uma unidade temática ou um fio condutor a ligar as pequenas histórias que se sucedem. Mas, nesse caso, deu pra escolher um outro caminho. Afinal, trata-se de um livro mítico, que acaba de ganhar nova edição pela Companhia das Letras, quase quarenta anos após o lançamento pela coleção Cantadas Literárias da Editora Brasiliense. O livro ficou anos fora de catálogo quando a coleção foi extinta e ganhou outras edições ao longo dos anos 90. E volta às livrarias em diagramação caprichada e capa com delicado e belíssimo desenho do artista cearense Leonilson.

Morangos 2

Para quem ainda não conhece a força que os morangos de Caio F. tiveram quando de seu lançamento, um pouco de contexto. O ano era 1982. A ditadura militar ainda tentava manter o país sob controle, concedendo migalhas de abertura.  Após  a Anistia de 1979 e o relaxamento da censura prévia, estavam marcadas eleições diretas para os governos estaduais, depois de longas duas décadas de escolhas por colégios eleitorais viciados e alinhados com os generais. No mercado literário, a Brasiliense testava os limites da ditatura e de seu conservadorismo, lançando na coleção Cantadas Literárias títulos que traziam forte conotação sexual e política, como é o caso de Porcos com asas, que comentei neste vídeo. Os livros vendiam que nem água, embora enfrentassem pontualmente resistência de pais e diretores de escola quando eram indicados para leitura dos adolescentes. E então chegaram os Morangos mofados de Caio Fernando de Abreu. Jornalista, já com contos e crônicas publicadas, Caio trouxe para a galera daqueles tempos uma seleção de narrativas extremamente bem alinhavada. Mesmo com temáticas díspares e sem ligações diretas ou sutis entre as histórias, a obra tem uma unidade que não perdeu o viço quase quarenta anos depois de sua publicação.

Mas o motivo do sucesso de Morangos estava, e ainda está, em uma linguagem crua, direta, que bateu forte no peito da juventude do começo dos anos 1980. Caio trouxe para seus contos uma abordagem nada edulcorada sobre temas como sexualidade, amor, relacionamentos, uso de drogas, conflitos familiares, angústia, suicídio e outros temas profundos e espinhosos. Tudo sem rodeios, com palavrões onde eles cabem e expressões que poderiam ser chulas ou gratuitas se não estivessem dentro de narrativas tão bem engendradas. Não que fosse novidade, afinal já tínhamos João Silvério Trevisan e outros autores tratando a sexualidade de forma natural e cotidiana. Mas havia na escrita de Caio F. uma forte conexão com a cultura pop. A música, as artes plásticas, a própria literatura e o cinema estão presentes em praticamente todos os contos, sem contar que cada um deles tem uma sugestão de trilha sonora.

Também está presente o Caio F. que depois geraria milhares de frases bonitinhas nas redes sociais. Alguns contos transbordam o lirismo que marca uma obra póstuma, que reuniu crônicas do autor no volume Pequenas epifanias. Mas não é um lirismo fácil e meloso. As frases famosas em geral são tiradas de textos que sempre têm uma quebra com a realidade nua e crua tomando os corações dos amantes, fazendo as personagens de Caio caírem na real. Esse é o aspecto que o aproxima de sua grande influência, Clarice Lispector, a ponto de que há no Twitter um perfil chamado Caio Lispector, gerando frases melosas, românticas (e fakes) dessa fusão entre ambos.

Lá no distante 1982, depois da experiência arrebatadora com a leitura de Porcos com asas, o adolescente que eu era correu atrás de Morangos, entrando na onda de milhares de pessoas que fizeram do livro um dos maiores sucessos de vendas da Brasiliense. Na época, consegui um exemplar de empréstimo na biblioteca pública do Tatuapé e li de uma sentada. Muitos temas ainda escapavam do meu universo de menino de um bairro conservador e pacato da Zona Leste. Mas foi uma espécie de portal para tentar entender um mundo que era muito mais diverso do que eu poderia imaginar, a partir daquele meu ponto de observação. Não por acaso, foi em 1982 que meu interesse por política e cultura começou a ficar mais aguçado, me lançando na campanha para governador como voluntário em panfletagens, que fazia escondido da família. A releitura, na maturidade¸ teve um sabor nostálgico. Mas não se enganem. Morangos não é um livro datado, com bem pontuou José Castello no posfácio dessa mais do que bem vinda nova edição. De mofado, só mesmo o título.

P.S.: na foto que ilustra o post, detalhe de obra da exposição Diversa 2019, exibida ano passado no Museu da Diversidade Sexual de São Paulo.

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