Infelizmente, não vamos passar o Carnaval no Recife.
Desde que mudei para São Paulo, em 2011, essa é uma viagem sagrada que só deixamos de fazer duas vezes, numa por falta de grana (tínhamos acabado de mudar), noutra por, digamos, esgotamento corporativo.
Em 2024, com os preços das passagens aéreas na estratosfera, vamos novamente passar o Carnaval em São Paulo, em um bairro que virou um dos epicentros da recém-nascida folia paulistana. Estamos muitíssimo bem localizados para finalidades momescas e poderíamos fazer inveja a muita gente. Mas…. São Paulo não é o Recife.
É certo que a capital paulista melhorou bastante. Porém, ainda tem muito a aprender com relação à folia, e podia muito bem descer do pedestal e de fato trocar uma ideia com quem já tá no rolê há mais de 100 anos. Não jogar bombas nos foliões às 6 da tarde já seria um excelente começo. Mas a verdade é que, por melhor que fosse, continuaria não sendo o Recife. E isso, amigas e amigos, é fatal.
Pra quem nunca passou o Carnaval na minha terra, primeiramente aconselho que vá.
Em segundo lugar, sei que este texto vai parecer bairrista e um tanto quanto saudosista. Mas como é de conhecimento amplo, a gente nem sai por aí dizendo que é pernambucano para não humilhar as pessoas. Além disso, é impossível não sentir saudades daquele exato lugar onde o Capibaribe e o Beberibe se unem para formar o Oceano Atlântico e fazer o melhor Carnaval do mundo.
E quem diz nem sou eu, é a literatura.
Já que não vou ao Recife, mato um pouco da saudade folheando o livro Frevo: 100 anos de folia, parte de um projeto mais amplo liderado pela Prefeitura do Recife para o centenário da palavra frevo. É uma edição incrível ilustrada principalmente com fotos feitas na cidade por Pierre Verger, no carnaval de 1947, e por Marcel Gautherot, em 1957. Há também obras de arte, rótulos de vinis, mapas e ilustrações de jornais.
O livro tem textos de Camilo Cassoli e Luiz Augusto Falcão divididos em capítulos que abordam as origens, a música, a dança, a sombrinha e por aí vai. Mas o que o volume tem de mais legal é a inserção de trechos sobre o frevo escrito por escritoras e escritores brasileiros – principalmente ensaios e crônicas, mas também contos e trechos de romances. A lista inclui Mário de Andrade, Clarice Lispector, José Lins do Rêgo, Antônio Maria e outros.

Quase todos são textos da primeira metade do século XX, mas é incrível como continuam expressando a sensação de estar no Recife no carnaval de rua. Embora hoje existam muitos palcos e festas privadas, a experiência de ir atrás de um bloco animado por uma orquestra de frevo no chão, sem amplificação, continua mais ou menos a mesma. Uma das primeiras coisas a notar é a percepção dos escritores que o carnaval do Recife é marcado pela violência – mas pera lá, não exatamente da forma como você está pensando, como explica Valdemar de Oliveira:
Ele não convida: arrasta. Sua efervescência rítmica tem qualquer coisa de magnético, contra o qual é difícil resistir. Enquanto a marchinha carioca flui, risonha ou irônica, triste ou sarcástica, como uma “Cidade maravilhosa” ou uma “Máscara negra”, que falam em amor, em mulher, em malandragem, o frevo, que não se canta, denuncia sua violência, seu desenfreio, sua disposição, até nos títulos com que se batiza. (Valdemar de Oliveira)

Já Mário de Andrade, que foi ao Carnaval do Recife como parte de seu projeto de registrar a cultura popular em todo o país, também percebeu que frevar no meio da rua tem um componente de catarse, que ele chama de “ardência orgíaca”. “Diante de coisas assim a gente perde mesmo a tramontina, cai no frevo e manda à fava todas as circunspecções”, escreveu.
Quem já esteve no meio de um bloco quando começa um frevo envenenado sabe muito bem o que é isso. Carlos sempre lembra do primeiro Carnaval que passou no Recife, quando ouviu uma orquestra puxando uma música e me viu dançando pela primeira vez, todos os membros sendo jogados para todos os lados ao mesmo tempo.
A vibração paroxística do frevo é realmente uma coisa assombrosa. É, enfim, um verdadeiro ‘allegro’ num ‘presto’ nacional. É, sem dúvida, o entusiasmo, ardência orgíaca, mais dionisíaca de nossa música nacional. E aquele rapaz que dançou! Mas, será possível que uma coreografia assim ainda se conserve ignorada dos nossos teatros e bailarinos? Que beleza! Que leveza admirável! (Mário de Andrade)

Sobre esse caráter brutal, o texto de que eu mais gosto é o de Antônio Maria, que capta outra questão no Carnaval recifense: ele é revoltado. Não contra uma coisa específica. É uma espécie de revolta como estado de espírito, que está na base exatamente da ocupação completa da rua com uma celebração infinita – e foda-se o trânsito e o barulho e o cacete a quatro.
Teve um ano que a Prefeitura resolveu instituir mão única de blocos na Rua do Bom Jesus e sabem o que aconteceu? Metade deles entrou na contramão de propósito – e claro que isso resultou em multidões se cruzando em direções opostas numa via estreita.
Um dos blocos de que eu e Carlos participamos sempre simplesmente não tem trajeto definido e se você não estiver por perto quando ele sai, a única maneira de encontrá-lo é tentar seguir pessoas vestidas de verde com cara de que sabem para onde estão indo. Pode parecer só brincadeira – e é também – mas por trás disso existe uma dimensão política de fruição do espaço público sem regras. É o povo no comando, pelo menos quatro dias do ano.
Mas vamos a Antônio Maria:
Tudo deve estar mudado. O carnaval do Recife, talvez, não seja, hoje, um desabafo. Talvez, não contenha aquele desafio de homens e mulheres, livres de todas as sujeições e esquecidos de Deus. É possível que se tenha transformado numa festa, simplesmente. Talvez seja alegre e isto é sadio. Mas, os meus carnavais eram revoltados. Não tenho a menor dúvida de que aquilo que fazia a beleza da carnaval pernambucano era a revolta – revolta e amor – porque só de amor, por amor, se cometem os gestos de rebeldia. (Antônio Maria)

Também adoro o que escreve Paulo Fernando Craveiro sobre o frevo, comparado ao vento, que não pede licença para possuir as pessoas de maneira diabólica.
Dêem-lhe uma camisa de três cores e um guarda-chuva esfarrapado. Ofereçam-lhe, talvez, dois goles de cachaça. Deixem que o frevo rompa o ar, atravesse por dentro da multidão e vá despertar os diabos que existem escondidos no homem.
Um homem é possuído pelo frevo assim como um homem é possuído pelo vento. Frevo e vento são coisas que quase não se deixam pressentir. Invadem, sem pedir licença, o corpo e a alma do homem.
Toda uma emoção se transmite através de braços e pernas. Ninguém sabe onde começam os braços e terminam as pernas. Frevo, igualmente, no seu impacto, não tem fim nem começo. É um momento.
Dêem-lhe uma camisa de três cores e um guarda-chuva esfarrapado. Ofereçam-lhe, talvez, dois goles de cachaça. Deixem que um frevo violente o espaço. A multiplicação disso tudo dará em carnaval. (Paulo Fernando Craveiro)
Como dança, o frevo é individual, não coreografado, mas como diz Câmara Cascudo, ele se faz na multidão:
A primeira coisa que caracteriza o frevo é ser, não uma dança coletiva, de um grupo, um cordão, um cortejo, mas da multidão mesma, a que aderem todos que o ouvem, como se por todos passasse uma corrente eletrizante. (Câmara Cascudo)

Até aqui falamos de ensaios e crônicas, mas há também romances e contos que enaltecem o Carnaval recifense, como O moleque Ricardo, de José Lins do Rêgo. Ainda não li, mas o Frevo: 100 anos de folia destaca um trecho em que o personagem do título vê o carnaval pela com estranhamento, por não participar dele, mas ao mesmo tempo encantado com aquele estado de espírito que envolvia a cidade inteira:
Há quatro anos no Recife, Ricardo não tivera conhecimento do que fosse mesmo o carnaval. Nos outros anos ficava numa porta de sobrado, vendo passar o povo de pé no chão, no frevo, os automóveis com as mulheres enfeitadas, caminhões cheios, o povo doido na rua. O moleque como tinha saído de casa, chegava, um pobre espectador da alegria de todo o mundo. Ele não sabia, não avaliava mesmo como se podia fazer aquelas coisas no meio da rua. Aqueles saltos, os gritos, as piruetas. Tudo lhe parecia impossível. (José Lins do Rêgo)

E para terminar, não poderia escolher outra pessoa que não Clarice Lispector. Nascida na Ucrânia mas emigrada para o Brasil ainda bebê, Clarice viveu a infância no Recife, na Praça Maciel Pinheiro, de onde hoje sai um dos blocos mais legais do carnaval, o Escuta Levino. Em um dos contos de Felicidade clandestina, bastante autobiográfico, ela relembra a energia do carnaval que se aproximava, mesmo não podendo participar plenamente dele, por causa de sua mãe doente. É Clarice, e não eu, quem diz: no Carnaval é “como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas”. De que outro lugar do país se pode dizer algo assim?
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu. (Clarice Lispector)
Restos de Carnaval pode ser lido aqui na íntegra,
Bom Carnaval a todas e todos, em qualquer lugar que estejam.