O que (também) é meu

Comecei a ouvir falar de O que é meu, romance de José Henrique Bortoluci ainda antes dele ser publicado. Notinhas na imprensa informavam que os originais do texto haviam sido negociados com editoras europeias pela Fósforo e logo teria seu lançamento no Brasil. O que realmente me chamou a atenção foi a história em torno do livro que estava por nascer. O relato do autor sobre a vida de seu pai, seu Didi, caminhoneiro da cidade de Jaú, que cruzou o Brasil ao logo de décadas, levando cargas, sonhos, frustrações e vivendo essa vida provisória da estrada, aparecendo em casa, de quando em quando para passar momentos efêmeros com a família. Esse enredo me tocou por ser eu também filho de um caminhoneiro. Meu pai, porém, nunca foi motorista de longas distâncias. Trabalhou boa parte da vida em entregas urbanas, seja no transporte de materiais para feirantes em São Paulo, ou levando combustíveis para postos de gasolina do Vale do Paraíba, onde foi se estabelecer no fim dos anos 1970, distante da família de origem. O que une as histórias de ambos é a ausência. Seu Didi, por força de suas longas viagens, meu pai, por conta do abandono paterno, uma praga da sociedade patriarcal brasileira.

Quando finalmente o romance chegou, corri para comprar, mas, para minha frustação, demorei a conseguir, porque o livro se esgotava rapidamente nas livrarias, confirmando a fama que lhe precedeu, virando um best seller. Feita, finalmente, a compra, devorei suas 137 páginas de uma sentada.

A vida de seu Didi, narrada pelo filho sociólogo, traça um panorama do que foi o Brasil dos anos de chumbo da ditadura, cujo golpe de 1964 completa 60 anos na data em que concluo e publico este post. Data para nunca ser esquecida, assim como o infame 8 de janeiro de 2023.

Com seu olhar de pesquisador em sociologia, Bortoluci faz literatura de altíssima qualidade, ao mesmo tempo em que nos leva a mergulhar na política e na sociedade brasileira dos anos em que seu Didi andou pelas – precárias – estradas do país, a partir de 1965. Seja levando materiais para as grandes obras como a Transamazônica, ou transportando alimentos para a região norte, enfrentando lamaçais, assaltantes, se organizando em comboios com outros caminhoneiros e precisando cumprir prazos desumanos de entregas das mercadorias, muitas vezes sacrificando o sono, enfrentando a fome e os riscos de ficar sem combustível ou atolado em meio ao nada, enquanto seus filhos e a mulher, vivendo de serviços de costura, esperavam pelo eterno retorno desse Dom Sebastião.

O autor refaz esses caminhos de seu pai pelo Brasil a partir de anotações de seu Didi, conversas e entrevistas que realiza durante o longo e doloroso processo de tratamento de um câncer que terá seu desfecho no último dia da Flip de 2023, onde Bortoluci, já célebre por seu romance, receberá a notícia da partida do pai.

A obra dialoga com o estilo de autoficção (??) de Annie Ernaux, cita Svetlana Alexijevich e se inscreve em um estilo literário que parte de histórias reais de vida para dialogar com questões sociais, econômicas, políticas de um país e de uma época, sem deixar de lado os afetos, os desafetos, e a tentativa de dialogar com as gerações passadas para entender o presente. As conversas entre José Henrique e seu Didi aconteceram em um momento agudo da nossa história recente. Entre as várias internações e períodos de tratamento em casa, havia uma pandemia, o isolamento social e um governo negacionista que empurrou centenas de milhares de brasileiros para a morte.

Bortoluci resgata nas histórias de seu Didi um Brasil que caminha apesar da política, que leva suas cargas a todos os cantos porque simplesmente tem de levar, para sobreviver e fazer chegar a milhares de outros sobreviventes as latas de sardinha e presunto em conserva, as vigas que formarão uma ponte, a areia e o cimento que erguerão um estádio de futebol. O caminhão segue seus rumos e a vida continua.

Mas é desses trajetos que traçam uma enorme teia de caminhos pelo mapa do Brasil que Bortoluci extrai um retrato de um país em que na maior parte das décadas de perambulações de seu Didi esteve sob a sombra do autoritarismo.

O que é meu me remete à história de seu Henrique, meu pai, que dirigiu seu caminhão pelas estradas paulistas e pelas ruas paulistanas mais ou menos no mesmo período. Assim como seu Didi, meu pai concluiu apenas o ensino fundamental I, que antes a gente chamava de primário. E assim como na história de José Henrique, os filhos puderam seguir adiante, com formação universitária, empregos em escritórios, redações, emissoras de TV. E também como Bortoluci, olho para esse passado pensando na frase de João Moreira Salles na orelha do livro. “O livro não se restringe ao que é de José Henrique. Aqui há muito, muitíssimo que também os pertence – a nós, brasileiros, que seguimos tentando nos haver com este país vasto, bonito e injusto que é o nosso.”

Por fim, não dá pra terminar a leitura de O que é meu sem lembrar de Bye Bye Brasil. O filme e a canção, que você pode escutar aqui. Talvez um dos maiores retratos artísticos de uma época triste, melancólica, anos 1970 que marcaram a minha também melancólica infância, quando eu me sentia um jiló.

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