Livros da Fuvest: Os ratos

Esta foi minha segunda leitura do ano de um livro indicado para o vestibular da Fuvest, o maior do país, que dá acesso aos cursos de ensino superior da Universidade de São Paulo (ou Versailles, como um amigo da Unifesp gosta de chamá-la). E desta vez a experiência foi muito distinta da primeira, com Marília de Dirceu. Diferente do livro chatíssimo de Tomás Antonio Gonzaga, Os ratos, de Dyonélio Machado, é uma leitura instigante, mesmo para adolescentes cheios da tabela periódica na cabeça.

Para começar, o livro que lembra muito a premissa de Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf, que acompanha apenas um dia na vida da personagem principal, observado através dos fluxos de pensamento dela mesma e das pessoas com quem cruza.

No romance brasileiro, acompanhamos 24 horas na vida de Naziazeno, um funcionário público de baixíssimo escalão em Porto Alegre, cronicamente às voltas com dívidas. E este dia começa com uma briga com o leiteiro, que o ameaça de parar de entregar leite se ele não pagar os 53 contos que deve. Naziazeno mal tem dinheiro para a passagem de bonde até o centro da cidade, onde começa um périplo para tentar levantar a grana com o diretor da repartição, com os amigos, no jogo do bicho, na roleta, com agiotas.

Logo percebemos que o perrengue do personagem não é fruto exclusivo da desigualdade social e de sua pobreza – que não é extrema -, mas sobretudo de uma inadequação profunda do personagem às questões práticas da vida. Ele tem um emprego seguro em um escritório, mas que trata com displicência, sempre buscando resolver seus problemas financeiros através de caminhos milagrosos, como empréstimos que dá como certos (mas que não acontecem), nas apostas e na solidariedade de outros homens que, como ele, tentam dar um jeitinho em tudo.

Em outras palavras, Naziazeno é um enrolado.

Mas o interessante em um livro como esse é tentar enxergar o que o personagem diz sobre o mundo que o cerca. A época em que o livro se passa, os anos de 1930, são de profundas transformações nas capitais brasileiras, que buscam se modernizar através de reformas urbanas. Quando Naziazeno sai de casa para a cidade (ou seja, o centro), é como se ele estivesse atravessando um portal entre uma vida doméstica, quase rural e cheia de problemas, para outro universo, masculino, racional e urbano onde, no entanto, ele também não se encaixa perfeitamente.

Essa ambiguidade atinge a forma como enxerga sua esposa – “A sua mulher encolhida e apavorada é uma confissão pública de miséria humilhada, sem dignidade — da sua miséria” – e também de como se vê e aos outros nesse mundo em transformação. No bonde, indo para a cidade, ele mira um homem que julga ser um “empregado de balcão” (ou seja, do comércio), conversando com outro:

Naziazeno observa melhor o indivíduo: ele tem mesmo o ar de pessoa de fora, de gente da campanha. A pele é trigueira, cheia de rugas. Parece homem de quarenta anos. Tem o cabelo todo preto e liso, como de índio. Certamente não mora na linha do bonde. Habita uma pequena chacrinha, onde possui a sua criação. Tudo é relativa fartura lá. Dinheiro não há de ter, dinheiro: mas tem a despensa cheia. A casa produz: galinhas, um que outro porco, frutas etc.

Aquela cara também inspira respeito, aquela cara de olhar moroso, que traduz uma compreensão lenta e firme.

É quase como se ele desejasse essa “segurança” da não dependência do dinheiro, ao mesmo tempo em que claramente não resiste à força centrípeta da cidade que cresce, muito embora isso signifique sua própria exclusão.

O livro é narrado em terceira pessoa, mas o narrador tem acesso aos fluxos de pensamento de Naziazeno, o que nos permite acompanhar o turbilhão que passa por sua cabeça enquanto cruza a cidade com fome e apegado a um fio de esperança – que é quase pior do que não ter esperança nenhuma.

Está em jogo aqui não apenas uma questão de sobrevivência, mas sobretudo de perda da dignidade, processo que se infiltra no personagem ao ponto em que o dinheiro – consegui-lo, perdê-lo – ganha uma dimensão quase transcendente, que atinge seu ápice no final do livro quando, enfim, aparecem os ratos do título. A principal crítica de Machado parece ser ao mundo governado pelo capital.

Ligado a este, um outro ponto interessante: Naziazeno é um personagem extremamente individualista. Como no trecho acima, sua mulher “encolhida e apavorada” só é um problema na medida em que isso denuncia sua própria miséria, sendo o bem estar dela e do filho quase secundários. Este ponto pode ser lido como uma crítica aos efeitos dos ideais de modernidade, com a fragilização das coletividades e da solidariedade comunitária – vejam que a solidaridade que ele busca é a de homens como ele, dentro de um círculo no qual não está, mas a que deseja pertencer.

Para quem vai prestar vestibular este ano, eu recomendaria atenção aos temas da urbanização e modernidade no começo do século 20, a urbanização das capitais brasileiras e, do ponto de vista literário, da narrativa baseada em fluxos de pensamento.

A leitura é fluida e estimulante – em resumo, um livro que eu recomendaria pra quem gosta de boa literatura brasileira.

A edição que eu li foi a da Todavia para Kindle.

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