A censura a “O avesso da pele”

Em um conto famoso do escritor italiano Ítalo Calvino, um grupo de militares recebe a missão avaliar todos os livros da maior biblioteca pública de uma nação fictícia, a fim de decidir quais deles são apropriados ou não pra circular. Quanto mais liam, no entanto, mais difícil ficava a missão dos militares, pois ao ter acesso a narrativas de diferentes pontos de vista, mais complexos ficavam seus próprios pensamentos.

No fim, a missão termina como um absoluto fiasco: o relatório não conclui o que os superiores esperavam, os militares envolvidos são postos na reserva por “esgotamento mental” e depois são vistos à paisana, visitando a biblioteca todos os dias, para continuar lendo os livros, com ajuda e orientação do bibliotecário que antes os havia “ajudado” na missão.

O elemento mais fantástico do conto de Calvino é a ideia de que os censores realmente leem as obras que estão censurando. Infelizmente, quase nunca isso é verdade; do contrário, talvez eles acabassem mesmo tocados pelos textos (a esperança no conto de Calvino) ou passassem à história como criaturas menos burras.

É famoso o caso de As meninas, de Lygia Fagundes Telles, liberado em plena ditadura militar mesmo tendo a descrição detalhada de uma sessão de tortura. Isso aconteceu porque o censor não chegou à página 153, onde o trecho aparecia, e liberou a obra por achar que o livro era uma narrativa frívola sobre três garotas desmioladas.

Corta para 2024. Embora não exista censura oficial no país, livros vêm sendo sistematicamente perseguidos por figuras mais parecidas com os censores burros da ditadura militar brasileira do que os militares do conto de Calvino. O caso mais recente envolve o romance O avesso da pele, de Jeferson Tenório, alvo de recolhimento em três estados depois que a diretora de uma escola em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, publicou um vídeo em que ressalta trechos com palavrões e descrição de uma cena de sexo.

O livro havia sido aprovado pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático em 2022 – logo, no governo Bolsonaro – estando apto a ser comprado pelo Governo Federal a pedido das escolas públicas que o desejassem incluir em seu programa pedagógico. O avesso da pele não foi “enviado pelo governo Lula para as escolas”, portanto; a tal da escola escolheu o livro e o recebeu, como era seu direito, para trabalhar com turmas de ensino médio.

O livro de Jeferson Tenório é como uma longa carta escrita por um filho a seu pai, morto em decorrência da violência policial. Ambos são negros e vivem em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, justamente onde a celeuma começou. Nessa espécie de tentativa de dialogar com a memória do pai, o filho vai contando sua história, desde quando seus avós se conheceram. Essa trajetória transgeracional é obviamente marcada pelo racismo e suas violências, físicas, simbólicas e cotidianas.

Henrique, o pai, vira professor de literatura por influência de outro professor de literatura, com quem começa a aprender o que é racismo e as implicações de ser negro no Brasil. São os mesmos ensinamentos que depois, esse pai sisudo e pesado, buscará passar ao filho, no intuito de que ele possa saber quem é, de onde vem, e defender sua identidade. Depois de trinta anos em salas de aula de escolas públicas, Henrique está cansado e mal consegue se relacionar com seus alunos. Tudo piora quando ele é transferido para uma turma noturna, onde são colocados os jovens repetentes que as turmas regulares já não aceitam mais.

Em um momento de epifania, Henrique descobre uma maneira de fazer os alunos se interessarem pela literatura através de Crime e Castigo, de Dostoiévski. E é justamente quando se conecta aos estudantes e se reconecta com o prazer de dar aulas que ele perde a vida em uma batida policial – uma abordagem que só ocorre, obviamente, porque ele é um homem negro no Sul do Brasil.

Dá pra entender porque o livro foi escolhido para trabalhar com turmas de ensino médio: trata-se da possibilidade de ilustrar com uma narrativa ficcional – mas baseada numa realidade vivida provavelmente por muitos dos estudantes – o que se aprende nas aulas de história sobre o período escravocrata e suas consequências concretas e duradouras. É um livro também que trata do poder da literatura e da própria escola como potências transformadoras.

O que só deixa ainda mais triste o episódio de censura protagonizado por uma diretora de escola, justamente no Rio Grande do Sul.

Em 188 páginas do livro, há talvez duas ou três cenas de sexo, que são breves e totalmente contextualizadas. A diretora focou esses trechos para descartar o livro inteiro e rotulá-lo como pornográfico – um disparate absurdo, que denuncia uma ignorância igualmente gigantesca. Mas uma ignorância com o método típico da extrema direita: diante de uma questão complexa, o uso de rótulos simplificadores e taxativos é uma forma de angariar concordância na opinião pública pois, como diz uma máxima basilar do marketing, complicação não vende.

No fundo, o problema não é O avesso da pele, nem nenhum livro individualmente. O problema é o livro em si, enquanto produto cultural e intelectual – e a ideia de que uma obra artística possa promover um olhar sobre a realidade de forma mais matizada e complexa, estimulando a autonomia de pensamento. Isso diz muito sobre o mundo nesse começo de século XXI: estamos em uma época em que é normal ter raiva da inteligência, da cultura e da ciência. Como chegamos nisso?

O documentário A Terra é plana tem uma cena excelente em que um cientista (negro, por acaso) fala para colegas em um pub que eles próprios falharam ao se comunicar com as pessoas. Por não conseguir ajudar a população a entender a ciência, floresceu essa desconfiança que culminou na adesão de um número considerável de pessoas que duvidam de um planeta esférico e acham que podem provar essa ideia com experimentos que parecem saídos de um episódio ruim de Casseta & Planeta. Uns cinco anos atrás, me peguei numa discussão surreal no Facebook com uma pessoa que duvidava da Lei da gravidade – que seria uma farsa porque, segundo ela, se a gravidade fosse realmente uma lei os navios não flutuariam (essa pessoa tinha mestrado, inclusive).

Em A tirania do mérito, o filósofo americano Michael Sandell relacionada a ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos a uma insatisfação popular com a meritocracia neoliberal e, especialmente, com a tecnocracia que tomou conta do poder e do debate público. Ele analisa que a sociedade americana perdeu a capacidade de ouvir as pessoas com menos escolaridade ou cultura, excluindo suas opiniões. O resultado disso é a raiva e a dúvida contra qualquer coisa que seja complicada de entender – seja uma terra redonda, a economia global ou literatura.

É mais fácil dizer que O avesso da pele é pornográfico do que discutir o racismo e da violência policial racista em Porto Alegre. Do que dialogar sobre o sistema de cotas e a falácia da meritocracia. Bem mais fácil do que partir de uma história de ficção para fazer um grupo de jovens perceberem que a pobreza tem cor. Ou, de forma mais singela, que seus professores são gente, que também têm problemas, frustrações e, eventualmente, transam. Na verdade, o diálogo não interessa a quem censura.

Quem faz uma avaliação tão rasa de um livro com base em um trecho não quer conversa, quer ganhar biscoito. Quem concorda também não tem o menor interesse em ler o livro – este ou possivelmente, qualquer outro -; quer só fazer parte do movimento e deixar sua opinião no grande tribunal da internet. O grande ponto, é: dialogar com essa galera é crucial pra sobrevivência de todo mundo no longo prazo. Como fazer isso? Não faço ideia – lembrem, eu sou a pessoa que não conseguiu convencer uma internauta com mestrado sobre a existência da Lei da Gravidade.

A censura acabou promovendo o O avesso da pele, cujas vendas aumentaram exponencialmente depois do episódio. Não acho isso especialmente bom, pra dizer a verdade – apenas triste o contexto em que ocorre.

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BÔNUS
Vale a pena ouvir o episódio do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo, sobre as investidas reacionárias na educação. O professor da Faculdade de Educação da USP, Fernando Cássio, avalia que a extrema direita brasileira na verdade persegue a desescolarização em massa da sociedade – o que faz muito sentido. Quando menos educado o povo, mais propenso a acreditar nas simplificações estapafúrdias que esse grupo usa para angariar capital eleitoral.

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