Penélope dos trópicos

“Quando você escreve, diante de toda a biblioteca escrita antes de você pelos grandes autores, você se pergunta, o que eu posso trazer de novo? A resposta é simples. Nada.”

A frase é do senegalês Mohamed Mbougar Sarr, autor de A mais recôndita memória dos homens, sucesso estrondoso no mercado editorial francês, primeiro escritor negro de origem africana a vencer o prestigiado Prêmio Goncourt, que chegou aqui com grande expectativa, em maio passado. Li, e não gostei, talvez venha a comentar em outro post.

Segundo ele, é possível reinventar narrativas por meio de seu estilo pessoal, e daí podem frutificar bons livros, mas dificilmente se escapará de tudo o que o cânone já produziu. “E o ponto é, quando você pertence a essa tradição literária, pode brincar com ela, mas quando você é de outro lugar, será que pode fazer isso sem ser acusado de plágio?”

A reflexão de Sarr, dada em entrevista à Folha de São Paulo, é um ótimo mote para eu começar a falar de Penélope dos Trópicos, romance de Luciana Hidalgo, que li no começo deste ano.

Andei um tanto ausente deste blog nos últimos meses. Por motivos variados, estava a adiar muitas das resenhas que ainda quero fazer das leituras mais recentes. E recomeço essa trajetória por esse maravilhoso romance, que no curso do tempo entre minha leitura e a escrita desta resenha andou ganhando prêmios e indicações importantes e correu o mundo.

Penélope está resenhado por muita gente boa e não vou entrar no fio da história, pois seria redundante. Meu olhar, neste caso, é para o processo criativo. E, a partir desse olhar, penso nas frases de Mohamed Mbougar Sarr que destaquei acima e pergunto, não sem uma dose de pretensão: Tudo já está escrito? É possível fazer algo de novo?

Minha humilde resposta, em discordância ao jovem escritor francês, é que sim, é possível, mesmo que se parta de referências do “cânone literário” e se emule a obra e o estilo de outros escritores, como também ele faz ao reverenciar em sua escrita o genial Bolaño, sem no entanto copiá-lo.

Quem prova que é possível criar, de forma novidadeira e original, mesclando a história da literatura, os clássicos e a produção contemporânea é  Luciana Hidalgo, que embarcou com coragem e muita ousadia numa viagem literária que traz para uma cidade qualquer nos trópicos – o Rio de Janeiro e o Brasil transpiram nas páginas do romance, mesmo sem ser citados nominalmente – a história de uma Penélope inspirada na personagem da mitologia grega, em um país convulsionado por uma pandemia, pelo descaso das autoridades, pela desigualdade, dividido, fraturado e dominado por políticos de extrema-direita que parecem levar tudo em direção ao abismo.

É nesse ambiente que se insere a jovem Penélope do romance. Filha de uma professora de mitologia grega, arquiteta, desenhista, que busca transitar entre o peso do caos que a rodeia e a leveza de tentar encarar a vida com alguma dose de otimismo. Ao contrário da Penélope grega, que sacrifica sua vida na espera sem fim de Ulisses, enfrentando as agruras de uma cidade sitiada por inimigos, nossa jovem e tropical Penélope é uma mulher que procura manter sempre sua independência, ao se envolver com homens tão distintos como um jornalista, militante de esquerda, preso a idiossincrasias do esquerdo-macho contemporâneo, ou Theo, o professor de literatura grega que a tem como heroína.

A prosa de Hidalgo é complexa, repleta de camadas e referências à mitologia que exigem de nós, leitores e leitoras, algumas visitas ao Google para decifrar enigmas que se apresentam na trama. Mas é importante ressaltar que o romance tem uma escrita fluída, leve, apesar da forte erudição e em nenhum momento é pedante. A leitura nos leva também a buscar nessas referências outras leituras, como o ensaio Paideia – A formação do homem grego, de Werner Jaeger, que a própria autora cita como fonte de conhecimento e inspiração para a construção do seu livro.

Penélope dos trópicos está entre as melhores leituras do ano e tem feito por merecer os prêmios e as reverências que ganha da crítica e das leitoras e leitores. Antes de sair, duas informações importantes. Sem cair na tentação de fazer spoiler, prestem atenção na escolha genial do narrador do romance. E você vai precisar mesmo de muita atenção para descobrir, quase emparedada em um capítulo, a identidade desse ser onipresente em toda a trama.

Por fim, a outra grande ousadia de Luciana Hidalgo está na edição do livro. Autora de romances e ensaios consagrados, como o incrível O passeador, que comentei aqui, ela inaugurou com Penélope a Editora do Silvestre, selo que criou em 2022. Vida longa à Silvestre!

P.S.: depois de finalizar o texto, ouvi duas canções, enquanto puxava peso na academia, que remetem a esse ambiente de criação do novo a partir de clássicos. A primeira, é Baião de quatro toques, de Luiz Tatit e Zé Miguel Wisnik, composta em cima da melodia da 5ª Sinfonia de Beethoven. E a outra é A festa, em que Milton Nascimento decanta a melodia de La Bamba, sim, isso mesmo. É a arte de (re)criar.

Um comentário sobre “Penélope dos trópicos

  1. Caro Carlos Henrique, que resenha impressionante você escreveu sobre a minha “Penélope dos trópicos”. Quantas considerações finas e importantes você teceu, certamente devido à sua capacidade de enxergar tudo, toda a complexidade e toda a simplicidade dessa Penelopeia. Obrigada por essa leitura tão especial.

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