Porque ler ‘O museu da inocência’

Escolhi esse livro para as curtas férias que passei em fevereiro, sozinha, em Alter do Chão, no Pará. Quando viajo assim, gosto de levar um livro mais longo, que vai me acompanhar nas jornadas em aeroporto, avião, na praia e nas horas de descanso no hotel. Estava com ele na estante há um par de anos, acho que desde que comecei o mestrado na Museologia, porque uma coisa me intrigava: o escritor turco Orhan Pamuk, prêmio Nobel de Literatura em 2006, aparecia com alguma frequência entre as referências e textos sobre museus enquanto eu pesquisava para a minha dissertação.

E tem mesmo razão de ser, como vocês verão ao longo desse post. Mas eu sabia pouco ou quase nada sobre o livro em si quando resolvi comprá-lo e, muitos meses depois, levá-lo para dar uma voltinha na Amazônia. Semanas atrás, uma pessoa pediu uma indicação de livro para ler nas férias e mandei justamente a curta resenha que eu havia escrito de O museu da inocência no Instagram – era um grupo de WhatsApp, e a repercussão foi tanta que várias pessoas ficaram interessadas. Isso me estimulou a escrever um post mais longo.

Então vamos lá, algumas razões para ler este belo romance turco nas férias, ou em qualquer momento da vida:

A história de amor de uma vida inteira

O museu da inocência trata da longa história entre Kemal, um burguês turco, e sua prima distante Füsun, infinitamente mais pobre. Eles não se viam desde que a moça era criança, mas se reencontram quando Kemal está prestes a casar com outra mulher. Eles começam um caso, com o típico roteiro em que o homem mais velho e poderoso mantém a jovem interessada com promessas falsas e mentiras.

Eles se separam, Kemal acaba desfazendo o noivado, ela casa com outro, mas a história entre os dois sempre vai pairar sobre a vida deles e de todas as pessoas que os cercam, ao longo de várias décadas. Kemal e Füsun continuam se encontrando regularmente como primos que são (esse é o pretexto), sob os olhares atentos dos pais dela, com a atração latente barrada por sua própria história pregressa, pela mágoa infinita de Füsun, e pelos hábitos e tradições da sociedade turca.

Um novelão, portanto

A sensação de ler O museu da inocência foi muito parecida com a de Anna Kariênina, que li não faz muito tempo. É uma leitura leve, fluida, aparentemente sem pretensões de ser sentida como erudita ou poética. Orhan Pamuk coloca toda a sua escrita em função da história que está contando, o que deixa a leitura muito confortável, por um lado e, ao mesmo tempo, totalmente à mercê da narrativa. É difícil parar de ler, e me vi várias vezes torrando no sol de Alter do Chão sem conseguir desgrudar do livro nem pra reforçar o protetor solar, ou agarrar outro peixinho frito pra forrar o estômago.

Esta é uma coisa pra gente pensar sobre a literatura contemporânea. Às vezes, sinto nos livros publicados mais recentemente tentativas algo forçadas de parecer poético, de revolucionar a linguagem ou de incluir mil referências às leituras do autor. Quando isso não é bem feito, fica parecendo só ruído que nos distrai do que está sendo contado. Ou às vezes a história é só fraca mesmo. O museu da inocência, ao contrário, é uma história muito bem contada.

Fiquei pensando em como o livro foi influenciado pelo cinema turco (há menções importantes sobre isso na narrativa) e acabou influenciando também as séries turcas que hoje conseguimos assistir facilmente no Netflix. Tanto que, durante a leitura, fiquei o tempo inteiro imaginando os protagonistas como casal principal da série O famoso alfaiate.

Uma cidade em dois continentes

Por trás do novelão, aparece de maneira orgânica a história recente da Turquia – esse país cuja capital Istambul literalmente se divide entre Europa e Ásia. Muito do relacionamento entre Kemal e Füsun é determinado pelo tensionamento entre as convenções sociais atreladas às tradições locais e o desejo de ingressar no fantástico mundo ocidental das liberdades individuais (risos nervosos). Assim, enquanto as mulheres de Istambul tentam passar uma imagem alinhada aos hábitos europeus – seja na moda, seja na vivência de relacionamentos antes do casamento -, ao mesmo tempo são pressionadas a manter a virgindade e são julgadas quando não o fazem. Por isso a mágoa de Füsun com Kemal é tão grande. Para dormir com ela, ele faz promessas que não vai cumprir, o prejudica toda a sua vida futura, conscientemente.

O livro faz menções marginais à política turca do período – estamos falando da década de 1970, quando mais de cinco mil pessoas morreram em embates entre a direita nacionalista e grupos de esquerda, até um golpe de estado em 1980. O que fica realmente é que a burguesia podre de rica pouco precisa se importar com o mundo ao seu redor, mesmo quando o país de onde tiram riqueza está em franca convulsão.

Para quê serve um museu?

Quando fica claro que Kemal não vai desfazer seu noivado oficial eles se separam. Füsun tenta seguir sua vida, mas ele fica absolutamente obcecado por ela, a ponto de surrupiar e colecionar os objetos em que ela toca ou já tocou. Ao longo de décadas de colecionismo desesperado, Kemal está construindo aos poucos o acervo do que se tornará no futuro Museu da Inocência. A narrativa acompanha esses dois tempos – a história entre eles no passado, e Kemal elaborando o projeto desse museu no presente, com ajuda do autor Ohran Pamuk, que então se inclui na própria história.

Ao colecionar objetos banais, Kemal (ou Pamuk) questiona aquilo a que damos valor, aquilo que merece ser guardado e compartilhado. O sucesso do livro foi tão grande que a partir dele foi realmente criado o Museu da Inocência, inaugurado em 2012 em Istambul. É o único caso que conheço de um museu criado a partir de uma obra literária e cujo acervo é composto de objetos associados aos personagens.

Um detalhe bonitinho é que o livro inclui um ticket para o Museu nas suas páginas finais (no meio do texto mesmo) e a informação de que o visitante que chega com o romance na mão tem direito a uma entrada gratuita.

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