Livros da Fuvest: ‘Memórias de Martha’, de Júlia Lopes de Almeida

Finalmente a lista da Fuvest começa a ficar interessante ao chegarmos no terceiro livro no rol dos obrigatórios para o vestibular 2026. Memórias de Martha, de Júlia Lopes de Almeida, foi publicado originalmente como folhetim em 1888 e é uma leitura muito mais fluida do que os dois anteriores: Opúsculo Humanitário, de Nísia Floresta, um ensaio sobre o papel da mulher no final do século 19, e Nebulosas, de Narcisa Amália, poesia romântica mais ou menos do mesmo período.

Com Memórias de Martha, a lista avança um pouquinho no tempo cronológico em relação às duas obras anteriores e se diferencia muito quanto ao tom e formato: aqui, já temos um romance considerado realista, que aborda questões sociais de sua época, ajudando a entender o que era aquele Brasil que abolia a escravidão, aderia à República e se urbanizava – tudo isso sob o ponto de vista de uma mulher.

Escrito em primeira pessoa, o livro é como uma autobiografia da personagem principal que, já madura, olha para trás e analisa sua vida desde a infância, quando a morte do pai promove uma quebra traumática na forma de existir que ela e sua mãe até então levavam. Sem o marido provedor, a família remediada se torna miserável de uma hora para outra. A mãe – até então, dona de casa – começa a trabalhar em serviços domésticos extremamente mal remunerados para poder garantir a moradia em um cortiço insalubre.

Martha, portanto, não pertence àquele lugar, como deixam claro as suas maneiras, os cuidados de sua mãe e a cor de sua pele. O olhar com que ela observa o mundo cão ao seu redor é, ao mesmo tempo, de dentro e de fora: de quem vive aquilo, mas também de quem já conheceu outra vida. Assim, desde muito cedo, ela perde a sensação de se encaixar.

As crianças que são suas vizinhas se comportam praticamente como selvagens: Maneco, um menino de 8 anos, já bebe até cair. Mas a irmã dele, Carolina, percebe que Martha tem fome apesar de branca e reparte com a menina o seu próprio jantar – só para apanhar da própria mãe, em seguida, por dispender comida sem sua autorização.

Logo no primeiro capítulo, Martha escreve que “as crianças pensam” e que “suas impressões são as mais duráveis e profundas”. É uma afirmação interessante quando pensamos que a importância dada hoje à infância apenas se vislumbrava na época em que o livro foi escrito. E, no entanto, esta é justamente a premissa narrativa de Júlia Lopes de Almeida, pois toda a vida de Martha sobre os impactos de suas experiências traumáticas quando criança

Tão traumáticas que mesmo tendo acesso à escola e com a vantagem da cor de sua pele, ela tem dificuldades de aceitar a possibilidade de sair da miséria e voltar a uma vida menos difícil – caminho que começa a trilhar quando decide dedicar-se aos estudos e tornar-se professora, mas que é continuamente atravancado não apenas pelas condições materiais, mas também por um medo paralisante que ela não consegue explicar.

Aqui, você já deve ter percebido que Memórias de Martha pode ser identificado como um romance de formação, pois acompanha o processo de desenvolvimento da personagem até a idade adulta. E claro, há também percalços na juventude: o medo dá uma trégua quando Martha se apaixona pela primeira vez, apenas para levar um baque ainda maior ao primeiro fora, no típico caso do rapaz que atira para todo o lado, chama a atenção de uma moça e depois a dispensa sem explicações, ficando claro logo na sequência que pescou a atenção de outra mais interessante.

No final, Martha finalmente atinge independência financeira e chega a decidir nunca casar-se, mas volta atrás quando recebe a proposta de um homem muito mais velho, que vinha ajudando a sua mãe. Assim, o livro mostra também as mudanças na condição da mulher brasileira da virada do século, quando possibilidades como a autonomia total já podiam ser anunciadas, mas ainda não se concretizavam com facilidade.

Memórias de Martha é um livro construído sobre dualidades: mãe e pai, vida e morte, espírito e corpo, amor e resignação, pobreza e ventura, autonomia e casamento. Sua inclusão na lista da USP junto com Opúsculo Humanitário pode indicar uma intenção do vestibular de contrapor as duas obras, que tratam sobre temas parecidos com formatos e pontos de vista diferentes, ainda que possa haver também congruências.

Antes de encerramos este post, é importante assinalar que Júlia Lopes de Almeida participou da criação da Academia Brasileira de Letras em 1897, mas não foi aceita por ser mulher – o argumento dos demais acadêmicos foi de que a Academia Francesa, que inspirou a brasileira, só tinha homens. E como os abençoados resolveram a questão? Convidando no lugar de Júlia o marido dela, Filinto de Almeida, que ficou eternizado na cadeira número 3. E isso nem é uma piada.

A edição que eu li foi da Via Leitura, escolhida por ser a mais baratinha. Capa mole, miolo colado, papel poroso, texto em corpo em um tamanho confortável para leitura, mas sem textos de apoio.

Deixe um comentário