O mundo deve a invenção do computador moderno a um matemático gay que morreu envenenado por cianureto depois de ter sido condenado a um tratamento por castração química.
Alan Turing (1912-1954) era britânico e teve papel decisivo na derrota da Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, mas nem isso o salvou da lei retrógrada do seu país, que considerava homossexualidade crime. Ou tomava hormônios femininos pra deixar de ter desejo sexual por outros homens, ou ia pra cadeia. Escolheu a primeira opção e acabou morrendo deprimido, aos 42 anos, no que possivelmente foi um suicídio.
O que teria acontecido se a mente brilhante de Turing tivesse sobrevivido em liberdade, inclusive para amar quem bem entendesse? Esta é a premissa por trás de Máquinas como eu, do bes- seller Ian McEwan, lançado no Brasil pela Companhia das Letras.
Trata-se de um belíssimo livro de ficção especulativa. McEwan ambienta sua história na Inglaterra de 1982, numa realidade paralela em que avanços tecnológicos significativos já haviam permitido a existência de carros elétricos, dos telefones celulares e da internet tal como os conhecemos hoje, e de uma inteligência artificial desenvolvida o suficiente para o surgimento de uma primeira geração de androides praticamente idênticos aos seres humanos. Vinte e cinco são produzidos e batizados de Adão e Eva, conforme o gênero atribuído para a aparência física.
A narrativa começa quando um deles é comprado pelo personagem principal, Charlie, um entusiasta da tecnologia pobretão que torra uma pequena herança na compra de um Adão, pelo privilégio de ser um dos primeiros a possuir a novidade. O que acompanhamos, então, é o desenvolvimento das relações entre o personagem, sua vizinha/namorada Miranda e o androide Adão, um ser que nasce consciente e pensante já na idade adulta, sem passado ou lembranças, mas com um grande repertório de conhecimento – inclusive sobre como deve se “sentir” ou que expressões deve ostentar no rosto a cada situação, para parecer um ser humano normal.
Mas Adão ainda tem muito a aprender, e o faz aproveitando a conexão direta entre seu cérebro eletrônico e a rede mundial de computadores. E quanto mais Adão evolui, mais complicada se torna a relação com seus proprietários humanos. Ele, é claro, não se enxerga como meramente uma coisa que pode ser ligada e desligada contra sua vontade. E ele tem uma, bastante pronunciada. Se por um lado Charlie e Miranda ficam maravilhados com Adão, por outro assustam-se com o que ele representa: um humanoide melhorado com relação a eles próprios, inclusive – e principalmente – no que diz respeito a princípios éticos. Para Adão, a mentira é uma impossibilidade lógica.
Hábil construtor de narrativas com pegada de thriller, McEwan enxerta em sua história algumas reviravoltas quanto ao relacionamento entre Charlie e Miranda, que tem um passado obscuro a resguardar. Mas, longe de ser o foco central do livro, esta trama é a desculpa para que outras questões morais sejam levantadas, amplificando a discussão sobre as diferenças entre a forma de pensar dos humanos e das máquinas hiper-evoluídas. Para viver em sociedade, é preciso mais do que os cálculos que permite à IA ganhar partidas de xadrez de jogadores experientes.
“A questão é que o xadrez não constitui uma representação da vida. É um sistema fechado. Suas regras não são desafiadas e prevalecem constantemente em todo o tabuleiro. Cada peça tem limitações bem definidas e aceita seu papel, a história do jogo é clara e incontestável a cada etapa, e o final, quando chega, nunca é objeto de dúvida. Um perfeito jogo de informação. Mas a vida, onde aplicamos nossa inteligência, é um sistema aberto. Confuso, cheio de truques, dribles e ambiguidades, de falsos amigos. Assim é também a linguagem – não um problema a ser resolvido ou um artefato para resolver problemas. Mais como um espelho, não, um bilhão de espelhos amalgamados como no olho de uma mosca, refletindo, distorcendo e construindo nosso mundo em diferentes distâncias focais. Assertivas simples precisam de informação externa para serem compreendidas porque a linguagem é um sistema tão aberto quanto a vida.”
O fato de que Ewan McEwan escolheu precisamente o ano de 1982 para ambientar sua narrativa não é acaso. É o ano da Guerra das Malvinas contra a Argentina, o Reino Unido registra recorde de desemprego desde os anos 1930, ocorrem alguns atentados importantes do IRA, a suprema corte britânica decide que não pode haver punição corporal contra crianças nas escolas sem o consentimento dos pais. É também o ano em que foi lançado o filme Blade Runner, de Ridley Scott, clássico absoluto da ficção científica que elevou a outro patamar a discussão sobre o quê, afinal, configura uma vida. Adão tem muito do Roy Batty interpretado magistralmente por Rutger Hauer.
McEwan brinca com muitos outros “e se” ao longo do seu romance, mas o principal é, indubitavelmente, a vida de Alan Turing. Se a lei britânica não fosse tão idiota àquela altura (a homossexualidade foi crime na Inglaterra até 1967); se Turing tivesse podido desenvolver sua carreira; se fosse livre para manter um relacionamento estável e feliz com outro cientista – como estaria o mundo de hoje?
Longe de panfletário, Máquinas como eu não faz em momento algum um protesto direto contra a injustiça infringida a Turing, mas nem precisa. O pressuposto é cristalino e, de certa forma, aplicável também à Adão, o androide: no fim das contas, tudo é uma questão de entender outras formas de existir e permitir que elas floresçam, sem ameaça direta ou velada de violência.
Não sou das maiores fãs de Ian McEwan, embora goste bastante de Reparação. Mas nenhum outro livro dele me pegou tanto, até Máquinas como eu. É onde ele desenvolve com mais sucesso uma narrativa que não está apenas ancorada em conhecimento técnico, sua especialidade, mas especialmente numa discussão profunda sobre nossa sociedade – sendo, ainda assim e por isso mesmo, uma ótima histórica a se ler.
Gostou? Comprando na Amazon por este link, você ajuda a manter o Lombada Quadrada.