O apocalipse europeu

Valter Mãe ApocalipseJá estava a escrever esta resenha quando a imagem do menino sírio afogado em uma praia do Mediterrâneo correu o mundo. O mar da foto acima, ao qual europeus se lançaram na aventura de conquistar o desconhecido, hoje é o palco de tragédias, em um continente que se fecha aos povos que no passado foram seu sustento e financiaram o processo civilizatório da Europa, às custas de sangue e sofrimento.

Por isso, ler O apocalipse dos trabalhadores, de Valter Hugo Mãe, na mesma época em que se multiplicam as tragédias com imigrantes que tentam entrar no continente europeu parece ser uma brutal coincidência. Mas não é.

Na Europa de hoje, milhares de refugiados tentam chegar por barcos indecentemente lotados ou caminhões sufocantes. Tentam, mas nem sempre conseguem. E o que assistimos, entre paralisados e chocados, é a morte de milhares de idosos, adultos e crianças, exposta ao mundo pela mídia, que alimenta a curiosidade macabra da arquibancada.

Esses refugiados buscam abrigo em países cujos cidadãos fugiram das grandes guerras, das doenças e da fome dos séculos XIX e XX foram acolhidos em muitos lugares do mundo. Como pensar Nova York, Buenos Aires ou São Paulo sem italianos, irlandeses, espanhóis, alemães, portugueses? E o que pensar dessa Europa mesquinha, de portas fechadas?

O livro de Valter Hugo Mão não tem refugiados sírios, nem afegãos ou africanos. Trata de europeus mesmo. Duas portuguesas e uma família de Ucranianos, cujo destino se cruza em um lugar qualquer ao norte de Portugal. O autor joga luz sobre pessoas que sempre estão invisíveis no meio da sociedade.

Duas mulheres mal pagas em seus trabalhos de domésticas, que aceitam bicos bizarros, como o de chorar por mortos que nunca conheceram, fazendo-se de carpideiras, pagas a 50 euros por defunto.

E um jovem ucraniano que emigra para o “sonho do Euro”. Ele trabalha na construção civil, ou onde conseguir um lugar que precise de braços que não recusam os serviços que os civilizados cidadãos da comunidade europeia já não querem fazer.

A narrativa também nos transporta também para uma aldeia ucraniana. Lá, isolados do mundo, vivem os pais do jovem que emigrou. E trazem o retrato de um país maltratado pela crise, pela guerra e pelo permanente conflito étnico que assola boa parte do leste europeu, envolto em histórias nebulosas, de um passado impreciso, trafegando entre a miséria e a insanidade.

Valter Hugo Mãe traça uma trama crua do desterro. Mostra aqueles que vivem à margem, onde quer que estejam. Pessoas que são fadadas a não participar da festa do consumo que sustenta uma economia esquizofrênica.

A narrativa se alterna entre Portugal e Ucrânia. E vai nos mostrando os arranjos de sobrevivência, tentativas de afeto, crueldade das relações e um desencanto que paira sobre a vida de pessoas que não têm o direito de sonhar.

Valter Hugo Mãe, esse danado, nos entrega a dor e a paixão, sem lugar para a compaixão, em uma escrita carregada de lirismo. Mas não um lirismo piegas. A poesia da prosa de Mãe é particular, é algo que o faz ser um escritor distinto, dono de uma linguagem própria. Seus parágrafos longos e frases iniciadas em letras minúsculas são um permanente exercício de atenção para o leitor. Precisamos estar atentos, vigilantes, para ler Valter Hugo com a sensibilidade que sua obra exige.

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