Aprendi aos poucos a gostar do Museu da Língua Portuguesa. As imensas filas das primeiras exposições e o barulho midiático que logo o tornaram um “queridinho” me irritaram, confesso.
Por conta dessa birra, perdi as primeiras exposições. E ao ver o catálogo que Renata comprou na exposição de Guimarães Rosa, a primeira de todas, tenho vontade de cortar os pulsos por não ter enfrentado as filas e minha má vontade.
Dêem uma olhada nessa foto e digam se não fui estúpido.
Aos poucos, construí uma relação com o MLP. De exposição em exposição e nas cerimônias de entrega do Prêmio São Paulo de Literatura, aprendi a gostar do lugar.
Nos últimos anos, assisti a incríveis exposições, como Rubem Braga: fazendeiro do ar, a de Câmara Cascudo, linda, que estava em cartaz quando a tragédia se abateu sobre o centenário prédio da Estação da Luz.
Com a certeza de que teremos nosso museu de volta, atualizado e vivo como a Língua Portuguesa, o Lombada Quadrada traz pra vocês dicas de leituras de alguns dos homenageados ao longo de quase dez anos de história do MLP.
O museu tem acervo digital, é praticamente todo virtual. Mas os livros que representam nossa língua falada e escrita estão nas bibliotecas, nas livrarias e nos meios digitais para e-book. Leiam muito, esperando pela volta do museu. E que esse tempo seja o mais breve possível.
Grande Sertão: Veredas
Genial. Começar a ponte entre a língua que se fala e se escreve hoje e a obra de Guimarães Rosa foi uma grande sacada. Neste momento, releio Grande Sertão: Veredas, trinta anos depois da primeira leitura. E que releitura. A riqueza do texto, acrescida de mais repertório, vivência e outras referências que não tinha aos 19 anos, vale muito a pena.
Se você ainda não mergulhou em Rosa, comece por aí. É longo, mas incrivelmente belo. E não se engane. Rosa não escreve apenas a “linguagem do sertanejo”. Tem muita erudição na narrativa que Riobaldo faz a respeito de sua amizade com Diadorim. Esqueça a minissérie da Globo. Vá ao livro e saboreie a prosa de Rosa, cujas edições são da Nova Fronteira. E tem versões legais para Kindle.
Dom Casmurro
Todo brasileiro com mais de 15 anos tem de ler Dom Casmurro. É literatura de formação. É o gênio da nossa literatura. Se quiser começar com uma prosa mais leve, divertida e muito sarcástica, vá a Memórias póstumas de Brás Cubas. Mas leia a obra-prima de Machado. E não se prenda apenas à polêmica da traição (ou não) de Capitu. As desventuras de Bentinho e a obra completa de Machado renderam milhares de estudos literários e muita sociologia. Se quiser se aprofundar, procure nos sebos ou nas livrarias por Ao vencedor as batatas, de Roberto Schwarz, que analisa a obra machadiana sobre um ponto de vista político e sociológico muito original. Faça uma busca criteriosa pelas edições dos livros de Machado, muitos deles são mal produzidos e porcamente impressos. As mais comuns e de bom preço são das coleções para estudantes. Tem coisa boa também na Amazon e versões para Kindle. E, melhor, de graça ou por menos de R$ 10,00.
Gabriela cravo e canela
Jorge Amado foi grande. Talvez seja o mais conhecido dos escritores brasileiros no exterior. Das obras dele, gosto mais de Capitães de areia. Mas optei por indicar Grabriela. Uma leitura para se desprender das manjadas referências de novela, filme e minissérie feitas a partir do livro, com o típico sotaque baiano estilo Projac. Vá ao livro. E entenda o que tem de sensualidade, retrato da malandragem e dos costumes políticos tipicamente brasileiros. Jorge Amado, lembrem-se, era um ardoroso militante comunista. E sua obra traz uma observação apurada da sociedade brasileira, dos esquemas de poder e dominação. Boa leitura para uns dias à beira mar, durante as férias. A edição da foto é do finado Círculo do Livro. A obra de Jorge Amado foi republicada recentemente, com esmero, pela Companhia das Letras, ilustrada pelo artista plástico Carybé.
Assombrações do Recife velho
Gilberto Freyre, mais um dos homenageados, não é só o sociólogo de Casa grande & senzala, livro tão falado e tão pouco realmente lido (confesso, só li textos isolados para a universidade). Que tal, então, conhecer as assombrosas histórias do Recife velho, contadas neste livro enxuto e saboroso. Lendas urbanas, captadas pelo olhar apurado do escritor que bem conhece a alma recifense, tão dada a boatos e histórias fantásticas . A partir deste livro, a companhia Os fofos encenam fez uma montagem genial para teatro. Fiquem de olho na programação do site, porque, assim como o livro, é imperdível. A edição de Assombrações do Recife velho é da Global, com belas ilustrações de Poty.
Felicidade clandestina
A exposição foi sobre Clarice. E não sobre as supostas frases dela espalhadas pelo mundo virtual. Portanto, não mostrou uma escritora fofa e cheia de lições de moral. Mostrou a pessoa atormentada, a intelectual profunda, a paixão de Clarice pelo Recife e pelo carnaval, as crônicas, contos e romances dessa grande escritora. Indico aqui Felicidade clandestina. Contos curtos e crônicas ficcionais que foram publicadas no saudoso Caderno B, do Jornal do Brasil. Destaco o meu preferido, chamado Tentação, que narra o encontro fortuito entre uma menina ruiva e um cachorro de pelos vermelhos. Vê só esses dois trechos:
“Os pelos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. (…)
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância possível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.”
Inspirado nesse lindo conto, Caio Fernando de Abreu (Sim, ele. Não Caio Lispector) escreveu uma pequena joia chamada Pequenas epifanias, que você encontra aqui.
Clarice, você encontra pela editora Rocco e em boas edições para Kindle.
Livro do Desassossego
Fernando Pessoa é outro dos homenageados que é amplamente citado nas redes sociais. Há quem atribua a ele frases de Fernando Sabino, por exemplo. De pessoa, a dica é de um livro para deixar na cabeceira e ir lendo aos poucos. Trata-se do Livro do desassossego, publicado pela Cia. das Letras. São pequenos textos, anotações e alguma poesia que compõe um mosaico de fragmentos. Prosa poética. Pílulas para ler antes de dormir, como esta:
“Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco”
Leia este Pessoa e escape de citar sempre “tudo vale a pena…”.
Retratos parisienses
Rubem Braga pertence a uma estirpe praticamente extinta de grandes intelectuais humanistas. Seu apartamento, uma cobertura no Leblon, repleta de plantas, uma verdadeira minifloresta, era ponto de encontro de gente como Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, entre outros. Nessa cobertura, foi dada a especial atenção ao menino de 20 e pouquinhos anos, compositor de A banda, um tal de Chico Buarque. Imagine o tom (Jobim?) das conversas nessa cobertura. Na exposição do Museu da Língua, o ambiente foi reproduzido. E muitas máquinas de escrever remetiam ao talentoso cronista Rubem Braga. O livro em destaque traz crônicas de seu período na capital francesa, no começo dos anos 1950. Ele simplesmente relata conversas e visitas a pessoas como Jean Cocteau, André Breton, Marc Chagall, Jean-Paul Sartre, Pablo Picasso, Jacques Prevért, entre outros. Quer mais? O livro é curto, com textos enxutos, publicados no Correio da Manhã. A edição é da José Olympio.