Um romance? Não. Não tenho mais resistência. Para escrever um romance precisa ser como Atlas, segurar o mundo inteiro nas costas e aguentar ali meses e anos enquanto os casos vão se resolvendo. É demais para mim no estado em que estou hoje.
A frase é do Señor C, o personagem-narrador de Diário de um ano ruim, livro publicado em 2007 pelo sul-africano J.M. Coetzee, Nobel de Literatura.
O Señor C é um septuagenário escritor consagrado, de origem sul-africana, como o autor, vivendo em autoexílio na Austrália, também como o autor. Enfrentando problemas de saúde, com dificuldade para o uso do computador, Señor C, um idoso solitário e intratável, resolve contratar uma pessoa para digitar seus escritos. Ele tem uma encomenda um tanto insólita de uma editora alemã. Precisa entregar textos com opiniões fortes sobre tudo. Política, econômica, tecnologia, comportamento, esporte. Vale qualquer, desde que a opinião seja contundente. Qualquer semelhança com os blogueiros pagos nos dois lados do FlaxFlu da política brasileira não terá sido mera coincidência.
Eis que o Señor C, morador de um imenso condomínio de alto padrão, à beira de um parque, nota a presença de uma vizinha em suas incursões na lavanderia coletiva. Repara especialmente em seu vestido vermelho. Aproxima-se dela. E acaba por lhe oferecer o serviço de digitação de seus artigos.
Para contar essa história, Coetzee, septuagenário que está longe de parar de escrever romances, como seu personagem, monta uma narrativa paralela alucinante.
Na parte superior da página, em corpo maior, lemos seus artigos cheios de veneno e vaticínios sobre, literalmente, deus e o mundo. Polêmicas à altura dos mais ferozes blogueiros de nosso tempos, com uma vantagem. Estão carregadas de erudição.
A parte de baixo da página é ocupada com textos em corpo menor, que começam curtos, como se rodapés fossem. Ali, vem a narrativa da relação que o Señor C estabelece com Vinnie, “a moça naquele vestido curto tentador e agora de calça branca elegante”. Vinnie é uma jovem de origem filipina, que participou de concursos de beleza, até conhecer Alan, um agressivo consultor de investimentos, que abandonou a mulher para ficar com a tentadora ex-miss (qualquer semelhança com o Brasil é mera coincidência).
Vinnie se torna o ponto de ligação de uma surda batalha por sua atenção travada diariamente entre dois homens. O Señor C, tentando entender porque ela vive com um sujeito que considera inculto. E Alan, com raiva e ciúmes, que o levam a buscar meios para aplicar um golpe financeiro no velho, e rico, escritor.
Cada passo dessa novela se desenrola em contato com os temas presentes nos artigos demolidores. A estrutura do livro nos leva a dúvidas sobre o melhor modo de ler as duas camadas narrativas. Ler página a página, em cima e em baixo? Ou ler o artigo inteiro da parte de cima, voltar páginas atrás e ler então os diálogos entre Señor C, Vinnie e Alan?
Optei pelo segundo caminho, precisando de um esforço de marcação de páginas e pontos de texto. Foi o modo, inclusive, de entender os encaixes entre duas narrativas aparentemente paralelas.
Coetzee, mestre do sarcasmo, faz de Diário de um ano ruim um livro repleto de armadilhas, cobrando a atenção do leitor o tempo todo. Não é um livro fácil. É um livro que enaltece, por vias tortuosas, o poder da palavra. E alerta para a tentação que as mídias sociais potencializaram: o uso da opinião para demolir reputações.
A edição brasileira, da Companhia das Letras, resolveu muito bem a edição das narrativas paralelas.
Se você ainda não leu Coetzee, este é um bom livro para começar a conhecê-lo. E, do que já li, recomendo demais o romance A espera dos bárbaros, também publicado pela Companhia das Letras. E estou de olho em Foe, recém relançado pela mesma editora, em em Coetzee reconta a história de Robinson Crusoé.