As artes narrativas tratam primordialmente da memória. Contar histórias é acessar um inconsciente coletivo formado por códigos emocionais partilhados histórica e socialmente: de que outra maneira nos emocionaríamos com um personagem inexistente? Quem conta a história o faz também acessando suas próprias memórias, emprestando-as aos personagens como se deles fossem, para trazer-lhes à vida e uni-los ao caldo coletivo do que é humano.
Sendo assim, o que sobra de alguém, artista ou não, quando a memória falha? É possível existir sem lembrança?
Não são questões novas, mas a ampliação da longevidade humana talvez as tenham tornado uma preocupação cada vez mais ampla. Se nos anos 1940 a expectativa de vida dos brasileiros era de 45,5 anos, em 2015 já era de 75,5 anos. Com a idade, a prevalência de doenças da velhice também aumenta – dentre elas o Mal de Alzheimer, que ataca justamente a memória. É inevitável que a arte pense a respeito.
À espera do Tio Alois, novela de Homero Fonseca, se insere nesse contexto. Livro artesanal publicado pela Mariposa Cartonera, o texto surge das inquietações do próprio autor a partir de episódios pessoais de esquecimento, ainda isolados. O medo de que sejam sinais de Alzheimer o fizeram transformar a inquietação em narrativa. A novela é um diário que o personagem Hermano Fontes anota as falhas de memória do cotidiano, na intenção de poder avaliar, semana após semana, o quão grave é a doença.
Em nota de abertura, Homero Fonseca alega ter recebido o diário das mãos da viúva de Hermano Fontes, logo após a morte deste. Teria então decidido publicá-lo por inteiro, com algumas notas explicativas que julgou conveniente incluir. O recurso é pouco original, mas serve aqui para gerar algum distanciamento entre texto e autor – li em uma entrevista ao Jornal do Commercio que Homero não queria ter sua obra tomada como autoficção (leia na íntegra aqui), ainda que o texto tenha sido inspirado em fatos pessoais.
Hoje sabe-se muito mais sobre o Alzheimer do que há um par de décadas, o que faz com que a chegada da doença seja claramente percebida pelos seus portadores. Como lidar com esse momento passou a ser um dos grandes dilemas do envelhecimento contemporâneo, um que muitas vezes vem atrelado à possibilidade do suicídio. Essa possibilidade dá o tom do livro: o personagem Hermano Fontes não quer morrer, mas também não quer permanecer morto em vida. Então, imagina de que forma pode preparar a própria morte, e teme que a doença o atrapalhe:
As complicações são facilmente imagináveis:
– Onde está o arquivo das anotações?
– O que é mesmo que eu preciso anotar?
– O que danado este revólver está fazendo na gaveta?
– Quem sou eu?A coisa toda tem seu humor negro, mas é séria. O suicídio, monseigneur Camus, não é o grande problema filosófico. Esse é a morte. O suicídio é uma questão de cronômetro.
O diário segue entre desesperançoso e autoirônico. Aos poucos, as anotações objetivas sobre os pequenos esquecimentos diários são substituídas por pensamentos mais profundos sobre a vida e a sociedade, tendo a memória sempre como eixo. Em um dos melhores trechos, o personagem pensa em como a humanidade se divide entre as atitudes “do caçador de luzes” e “do disseminador de trevas”. Chega à conclusão de que ambos os grupos estão em permanente tensão, mas se complementam em uma relação dialética e vital. Nas entrelinhas, o personagem ressente-se de sair desse campo de jogo – sem memória, não enxergará luzes nem trevas.
A novela faz referência a pessoas reais que sofreram ou sofrem de Alzheimer, como o empresário Antônio Ermírio de Moraes e o ex-vice-presidente Marco Maciel, assim como a outras obras de ficção. Uma delas, recente, é o filme Para sempre, Alice, com Julianne Moore no papel de uma professora de linguística que sofre da doença. A despeito de todo o planejamento que o doente possa fazer, o esquecimento acaba se instalando de maneira repentina, como em todos esses casos, e também no do livro, que se soma a uma recente (e crescente) produção artística sobre o evanescimento da memória – uma das condições mais dramáticas e humanamente complexas da contemporaneidade.
PS: Tio Alois é uma referência ao cientista alemão que descobriu a doença, Alois Alzheimer.
Gostou? O livro está a venda no site da Mariposa Cartonera.
“La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda, y cómo la recuerda para contarla.” — Gabriel Garcia Márquez.
Sou fã deste livrinho (pq pequeno) duplamente: da ótima e engenhosa novela escrita por Homero e do livrinho editado e confeccionado por Wellington de Melo, da Mariposa Cartonera.
Joca Souza Leão
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A Mariposa Cartonera é amor ❤
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