O ilustrador Roger Mello foi notícia em 2014 quando se tornou o primeiro brasileiro a ganhar o prêmio Hans Christian Andersen, a maior honraria do mundo para autores de livros infantojuvenis. Este ano, ele voltou a surpreender, estreando na ficção adulta como escritor – mas, ao mesmo tempo, sem abandonar por inteiro o universo do desenho. Ainda que W não tenha um único traço, é na obsessão por cores e linhas que sua história se desenvolve – uma história, diga-se, incomum na literatura contemporânea, seja pelo tema, seja pelo tom que adota.
W é o personagem-narrador, um copista de mapas adotado ainda jovem por um cartógrafo. Embora não haja indicação direta, intui-se que a narrativa se passa principalmente no século XV, quando as grandes navegações estavam a todo o vapor e os mapas que assinalavam terras recém descobertas eram verdadeiros segredos de estado. Quando a história começa, o cartógrafo acaba de ser morto, executado. W permanece no ateliê com Egon, filho dele e seu irmão de criação, cartógrafo como o pai.
Enquanto tenta entender como chegou até os momentos presentes (a história tem vários tempos), W descreve processos de criação das cores e de preparação dos pergaminhos para o desenho – processos absolutamente físicos e, em alguns casos alusivos à sexualidade e à sensualidade. Ao ato de raspar o couro para produzir pergaminho, por exemplo, é inevitável associar um certo sadismo no paralelo com a própria pele humana. A história mais tarde levará esse paralelo às últimas consequências, quando W se encontra capturado por causa de uma mapa tatuado às suas costas, esperando pelo momento de ser escalpelado.
Não achem que estou fazendo spoilers, longe disso. W não tem uma narrativa linear e, em certo sentido, nem ao menos uma história com começo, meio e fim. Essa construção é uma das forças do livro que, se não abandona um quê de romance histórico e outro de suspense, está focado principalmente sobre impulsos humanos – o impulso da criação, da pesquisa, de mudar o futuro, ou do desejo sem amarras. Há várias alusões a uma certa subversão da ordem das coisas.
Como copista, W ameaça trocar nomes de cidades e deixa brechas imperceptíveis nas muralhas das vilas que desenha, para possibilitar invasões imaginárias – um pouco como o revisor em História do cerco de Lisboa, que acaba mudando o passado ao acrescentar propositalmente um não ao texto sobre a reconquista da Península Ibérica pelos europeus. Haveria um desejo íntimo de influir sobre a interpretação do passado por parte de quem escreve (ou desenha)? Afinal, o que fica de um fato a não ser a forma como o registramos?
Nisso, Roger Mello parece indicar um questionamento sobre as motivações humanas. Segundo W, o verdadeiro prazer do cartógrafo não é desenhar costas e acertar distâncias, mas desenhar os monstros que adornam os mapa, para assustar e ao mesmo tempo atrair os aventureiros.
A certa altura, Egon parece acusar W por sua dissimulação, e ele se defende: “você fala como seu eu gostasse de esconder coisas entre as palavras”. Não é o que fazem todos os bons escritores? O cartógrafo é o viajante que não sai do lugar, diz em certo ponto. Idem o escritor, um expedicionário imóvel de questões mais amplas e profundas.
PS: O livro saiu pela Global Editora, numa belíssima edição com capa em amarelo ouro, cor importante para a história.
PPS: A imagem em destaque é de um painel fotografado na 31ª Bienal de São Paulo – um mapa inteiramente imaginário do artista Qiu Zhyjie.
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