— Você será uma boa repórter. Escuta mais do que fala.
Ouvi isso com uns 18 anos, quando ainda estava no terceiro período da faculdade de Jornalismo e fazia o meu primeiro estágio na profissão. Foi uma observação que nunca esqueci, nem nos curtos anos em que efetivamente exerci a reportagem, muito menos depois, quando me especializei em comunicação institucional e reativei este blog. Como leitora que também foi repórter, é um exercício constante buscar esse lugar de escuta em textos – lugar bastante evidente na escrita de Drauzio Varella.
Prisioneiras, lançado há poucos meses pela Companhia das Letras, fecha a trilogia iniciada em 1999 com Estação Carandiru, sobre a antiga Casa de Detenção de São Paulo, e que teve sequência com Carcereiros (de 2012), sobre os agentes penitenciários. Desta vez, o médico se volta ao cotidiano da Penitenciária do Estado de São Paulo, que abriga exclusivamente mulheres presas, e onde atende voluntariamente desde 2006.
O tema, portanto, é bastante familiar ao escritor e aos leitores que acumula desde Estação Carandiru. De fato, Prisioneiras poderia ser encarado como uma continuação óbvia de um mesmo filão. O que diferencia esse livro dos demais, no entanto, é o próprio objeto de observação: o feminino por trás das grades, o que acaba transformando esse livro num comentário sobre gênero na contemporaneidade.
Drauzio escorrega no começo do livro, quando elenca as diferenças entre as cadeias masculina e feminina lançando mão de estereótipos. Mulheres são mais limpas e organizadas; homens são mais atentos à hierarquia; mulheres tomam decisões emocionais, e por aí vai, sem nenhuma problematização a respeito da forma como as convenções sociais, e não a natureza, moldam os comportamentos, seja dentro ou fora das prisões.
Mas é um escorregão que não compromete o que vem a seguir – um relato atento, mais do que minucioso, das forma como o encarceramento afeta as relações entre as mulheres presas e de como a prisão acaba, em grande medida, amplificando os sinais do machismo estrutural. Como os leitores de Drauzio já sabem, a cadeia é como uma caixa de ressonância de questões sociais.
Assim como os homens, as detentas também tentam negar seus crimes. E o médico, por mais que exercite a empatia com as pessoas das quais cuida, tenta não cair nos discursos de negação por trás de quase todas as histórias. Ainda assim, entre ditos e não ditos, o sexismo é subjacente a quase todos os relatos das mulheres presas. Não raro, as prisões são resultado de assassinatos em resposta às agressões cotidianas, sofridas por elas próprias ou por pessoas muito próximas. Mas há muito mais a explorar nesse campo.
Drauzio narra exemplos de mulheres pegas em flagrante tentando entrar em presídios masculinos com drogas ou celulares escondidos no próprio corpo, para seus maridos e companheiros presos. Segundo as leis do crime impostas pelo PCC, elas não podem abandoná-los, sob pena de morte. Precisam manter as visitas até que uma eventual separação ocorra por iniciativa do homem; enquanto isso não acontece, são pressionadas de várias formas a se virar para que a vida deles na cadeia seja mais confortável, mantendo-se firmes nas visitas semanais que às vezes demandam viagens exaustivas para outras cidades, e inclusive cometendo crimes elas próprias.
Quando a situação se inverte e é a mulher a detenta, não há regra semelhante, e elas são solenemente abandonadas, o que explica as minguadas filas de visita às cadeias femininas Brasil afora. A obrigação de fidelidade ao marido preso é apenas um dos exemplos da chave (pouco surpreendentemente) machista sob a qual a age a facção criminosa. Assim como na cadeia masculina, cabe às integrantes do grupo (as irmãs) a manutenção da ordem na penitenciária, o que significa, às vezes, submeter as companheiras ao tribunal do crime. Quando o caso é grave e pode resultar em pena capital, no entanto, as irmãs não têm autonomia; precisam consultar o alto comando que, por regra, é exclusivamente masculino.
O machismo está presente de forma ambígua até mesmo nas relações homossexuais que são amplamente praticadas dentro da prisão feminina – como conclui Drauzio, paradoxalmente é atrás das grades que as mulheres conseguem espaço exercer plenamente sua liberdade sexual. No entanto, a parceria mais valorizada é aquela estabelecida com os chamados sapatões originais (homens trans, na gíria da cadeia) – aqueles que se esforçam por assumir o visual e o comportamento masculinizado.
Estruturalmente, o livro é dividido em duas partes, não declaradas, porém bem claras: uma primeira, em que Drauzio descreve a prisão feminina, o sistema prisional, e as relações de poder lá dentro, e uma segunda, em que o foco são as histórias pessoais de várias das detentas – nessa última parte, os textos são como crônicas curtas, e não por acaso. Como o autor revela no prefácio, desde Estação Carandiru a ideia de recolher histórias entre os detentos era inicialmente publicar textos semanais no jornal Notícias Populares. Drauzio confessa uma fascinação antiga pelo crime e pelos párias, que o levava ainda criança a percorrer vizinhanças pouco recomendadas para observar a ação no submundo das ruas.
Prisioneiras é um retrato possível a partir da junção de informações e depoimentos que o autor adquiriu ao longo de vários anos de consultas dentro da prisão feminina, esforçando-se em não fazer juízo de valor (embora nem sempre consiga). Como médico, Drauzio acaba sendo um dos melhores repórteres em atuação hoje no Brasil.
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