Adeus, velho camarada

“Quem de nós é um Dom Quixote?
E me diga: quem considera
normal um Dom Quixote?”

Quem tem por volta dos 40 anos hoje ainda deve lembrar do rescaldo da Guerra Fria e dos arranca-rabos entre a então União Soviética e os Estados Unidos – num mundo ainda dividido entre capitalismo e socialismo, os russos eram os outros, os antagonistas, por excelência, do modo de vida Ocidental; na cultura pop, eram os eternos vilões dos filmes da Sessão da Tarde. Desconfio, no entanto, que os mais jovens provavelmente mal sabem pra que lado fica a Rússia e, se sabem, devem ter descoberto este ano no álbum de figurinhas da Copa.

De fato, a Rússia saiu quase completamente do nosso radar e, salvo as bizarrices periódicas de Vladimir Pútin ou a descoberta recente da ligação do país com Donald Trump, mal teríamos notícias daquela porção do mundo. E que País é esse? Sabíamos pouco enquanto a cortina de ferro estava de pé e talvez saibamos menos ainda hoje em dia. A Rússia que ocupará o noticiário esportivo de todo o mundo a partir da abertura da Copa é um país novíssimo, surgido nos anos 1990 a partir das ruínas da União Soviética e de seu regime socialista – uma mudança traumática que ainda mantém cicatrizes frescas sobre a sociedade russa.

WhatsApp Image 2018-06-02 at 13.44.41 (1)É sobre esse trauma que se debruça a jornalista bielorrusa Svetlana Aleksiévitch em O fim do homem soviético, livro-reportagem escrito no estilo que lhe trouxe a consagração do Prêmio Nobel de Literatura: a autora costura centenas de vozes de entrevistados, com pouca ou nenhuma interferência informativa ou narrativa – quem não tem familiaridade com a história recente da Rússia vai se ver recorrendo ao Wikipedia algumas vezes. O livro inteiro, portanto, é o resultado da seleção de depoimentos de pessoas reais que, frente à habilidade da entrevistadora, compartilharam suas memórias com o mundo.

O foco da escritora está no pós-1991, ano que o regime soviético acabou oficialmente. Como foi para os entusiastas do regime soviético – os sovoks? Como foi aos que se opunham e ele? E aos indiferentes? Há depoimentos tanto de senhores e senhoras que viveram a maior parte da vida sob o socialismo quanto de jovens nascidos após o fim do regime.

Há alguns pontos em comum na maior parte dos depoimentos: a Rússia é um país com mentalidade bélica (“ou guerreamos ou nos preparamos para a guerra”, diz um dos entrevistados”); os sovoks se ressentem da perda de um ideal maior para o qual imaginavam viver, e que se perdeu com o fim do regime; a literatura tinha um papel simbólico importante na disseminação desse ideal de sociedade soviética; e, finalmente, a liberdade é um conceito absolutamente complexo: para uns, um caminho para a perdição; para os críticos, a possibilidade de expressar suas opiniões; para os mais jovens, a possibilidade de comprar o que bem entendessem.

Uma frase em especial reúne alguns dos sentimentos sobre formação, literatura e liberdade nessa transição:

“Os que liam e sonhavam em voar, como a gaivota de Tchékhov, foram substituídos pelos que não liam, mas sabiam voar”.

De repente, milhões de pessoas formadas em universidades para venerar a literatura russa e trabalhar como técnicos do regime soviético tornaram-se obsoletas diante das novas fronteiras do capitalismo: não apenas não sabiam ganhar dinheiro fora de suas profissões originais, como até as envergonhava a perspectiva de fazê-lo. Muitos dos entrevistados de Svetlana dizem que se sentiam mais confortáveis diante da falta de liberdade, num ordenamento em que tudo parecia ter um lugar e o Estado, ainda que falho, olhava por todos.

“Talvez fosse uma prisão, mas para mim era mais aconchegante nessa prisão. Nós estávamos acostumados àquilo…”, diz um dos personagens. “Havia ordem”; “Falar de dinheiro era vergonhoso”; “o socialismo era fazer parte de algo grandioso”, são algumas das outras frases recolhidas nas entrevistas, mas também: “fazíamos os melhores tanques do mundo, mas não tínhamos sabão em pó, nem papel higiênico”.

Já a convivência com a nova ordem capitalista é descrita pelos antigos soviéticos nesses termos: “comprei três jornais e cada um tinha uma verdade. Antes lia o Pravda e ficava sabendo de tudo”; “pessoas simples vão ao mercado e só ficam olhando, como se fosse um museu” (diante da variedade de produtos agora disponíveis); “a minha época acabou antes da minha vida. É preciso morrer junto com a sua época”; “Pútin é um democrata: é a piada mais curta de todas”.

Svetlana descreve através de seus entrevistados uma certa confusão ideológica entre os mais jovens, já completamente integrados ao capitalismo, mas agora achando interessante seu passado bélico e czarista; revendo Stálin um cara competente e Pútin, com sua vibe de serviço secreto, como um verdadeiro líder para os novos tempos – afinal, alguém precisa chegar com mão de ferro para botar ordem em tudo isso que está aí.

Uma das estratégias mais interessantes de Svetlana no uso quase exclusivo das falas de seus personagens reais é que O fim do homem soviético não chega a nenhuma conclusão fácil. Ou melhor, chega a essas duas: onde há gente, há diversidade de pensamento; e, se de perto ninguém é normal, quem dirá um país de dimensões continentais. O resultado é um caleidoscópio de múltiplas opiniões e visões, que inviabiliza uma descrição simples da Rússia e dos russos – exatamente o oposto do que provavelmente teremos durante a cobertura da Copa 2018, com a tendência da imprensa para explicações fáceis e estereotipia.

Lá pelas tantas, um dos entrevistados se pergunta: “existe em algum lugar gente como nós?”. É a Rússia, mas poderia ser o Brasil que clama por uma “intervenção militar constitucional” ou os Estados Unidos cujo presidente responde ao massacres em escolas com a proposta de armar os professores.

Pensando bem, poderíamos formar um clube.

PS: A imagem em destaque é de uma obra da artista Ana Maria Maiolino, fotografada há alguns meses na sede da  Oficina Cultural Oswald de Andrade, no Bom Retiro, São Paulo.

 

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Um comentário sobre “Adeus, velho camarada

  1. Bizarrice periódica de Putin? A meu ver, comentário inadequado, próprio de um jornalista que tinha lado durante o período da “guerra fria”, como fazem os da Globo despudoradamente até hoje. Putin não só não é bizarro, como se trata, para mim, de uma grande liderança mundial, mais seguro e circunspecto do que outras lideranças ocidentais mais atrapalhadas.

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