Um anjo surge no centro do Recife e é morto pelos transeuntes antes que possa levantar voo. A cena se passa à luz do dia na Conde da Boa Vista, uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Ao ver surgirem asas das costas de um homem que há pouco passava mal, a reação da turba é a de agarrá-lo, arrancar as suas penas e deixar o que resta dele ensanguentado na calçada. Não estavam movidos pelo ódio, nem pelo medo. Apenas pela curiosidade e certo egoísmo – todos queriam guardar uma pena como lembrança deste fato divino e acreditam, piamente, que agiram com a melhor das intenções.
Assim, a Conde da Boa Vista é como a porta do inferno de uma cidade onde nenhum milagre é possível – eis a abertura de Legião anônima, livro de contos de João Paulo Parisio, publicado pela CEPE Editora em 2014. Nenhuma outra das 17 histórias do livro teria cumprido tão bem o papel de estabelecer o tom que se manterá nas páginas seguintes. Esse tom é distópico e incomodamente familiar aos habitantes do Recife, onde a sensação do fim do mundo é quase uma rotina cotidiana.
Pode parecer exagero, mas não creio em coincidências: há outras obras recentes na prosa, na poesia e no audiovisual locais em que o insólito e o fantástico se misturam à realidade tendo a violência como eixo central. Não é de surpreender: dos relatos em páginas policiais à forma como a cidade é sucessivamente pilhada por gestores e classe dominante, o Recife é a própria definição de mundo–cão. É onde impera o individualismo, seja na hora de definir como o espaço público será ocupado, seja na hora de matar por quase nada. Ou de trocar um milagre por um troféu, ainda que o ato de conseguir o troféu signifique a impossibilidade do milagre.
De certa forma, os personagens de João Paulo Parisio enxergam a iminência das ruínas enquanto os outros circulam como se nada estivesse acontecendo. É assim em Blecaute, em que um rapaz sai para trabalhar e percebe que todos na cidade sumiram; os carros, sem ninguém ao volante, finalmente se tornaram auto-móveis. Ou em Miragem, em que os prédios da avenida Boa Viagem, em suas fachadas de mármore e granito, são “mauseoléus prematuros”, já condenados a um dia serem engolidos pelo mar. Ou na crítica à imprensa em Ponte giratória: “abutres em plumagem de papagaios”, que se apressam a instaurar o terror por meio de informações exageradas sobre um crime ocorrido em uma ponte.
No entanto, não é a cidade decadente o tema central do livro, mas a solidão, a dificuldade de se relacionar e a desigualdade social que, sim, têm essa cidade como cenário e catalisadora. A legião anônima do título é esse conjunto de seres humanos invisíveis lidando como seus apocalipses particulares: seja um garotinho enclausurado entre o bullying e o primeiro amor na alfabetização, seja uma idosa que cai durante o banho e lida com a perspectiva de ser esquecida no chão frio até morrer comida pelos ratos, sem que ninguém se dê conta (ela então vira uma santa, numa inversão parecida com a do primeiro conto: primeiro, a morte em decorrência do abandono, depois a santificação do martírio) . Há também alguns momentos de fantasia pura, como quando um tigre aparece do nada na avenida Boa Viagem (a da praia, para quem não conhece o Recife).
A escrita tem um toque clássico e, não fossem as referências narrativas à tecnologia, seria quase impossível alocar o livro em uma época específica; por isso, suas construções e vocabulário podem soar antigos ao leitor contemporâneo. Há boas metáforas (“remorso é lagarta-de-fogo”) e algumas frases que quebram a expectativa do óbvio – como no conto da cidade vazia: “Sem as pessoas, tudo parecia mais leal”.
Parisio lança outro livro de contos em breve, pela Editora Patuá, com o título Homens e outros animais fabulosos. A leitura de Legião anônima deixou a ideia de que podemos esperar coisas novas e boas desse novo volume.
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Como eu digo desde 2005, os muros de granito e porcelanato dos prédios de Boa Viagem fazem daquele bairro um enorme cemitério.
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capa e título bonitos, gostei. vou procurar!
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