Faz uns dois anos que vi na timeline da escritora Nara Vidal, no Facebook, uma foto do livro A poem for every night in the year (Um poema para cada noite do ano, em tradução livre), que uma de suas filhas tinha acabado de ganhar de presente. Chapei na mesma hora. “Que maneira mais maravilhosa de conhecer autores diferentes, sem pressão”, pensei. Quis aquele livro imediatamente, mas tinha um pequeno detalhe: ele não foi traduzido para o português, a tiragem original em inglês estava esgotada e não aparecia em nenhuma busca em sites de livros usados, nem no Brasil nem fora daqui.
Quando finalmente achei um exemplar, foi via Amazon, num sebo nos Estados Unidos que não entregava no exterior. Aí acionei uma amiga que mora no Oregon e mandei entregar na casa dela, que então o despachou via correios aqui pra São Paulo, num périplo de várias semanas. Só nisso, o livro já viajou mais do que eu nos últimos cinco anos. E quando finalmente aportou em São Paulo, foi morar direto na minha cabeceira, onde ficou exatamente por um ano. Não li todos os dias, confesso, mas sempre que atrasei cuidei de ler vários poemas sucessivamente pra voltar à data certa.
A experiência foi bem interessante: como esperava, conheci autores de que nunca tinha ouvido falar, li poemas desconhecidos de autores de que já gostava, reli poemas muito queridos e também aprendi um bocado sobre o contexto de cada um deles – pois cada poema é precedido de uma pequena explicação sobre o texto, o autor e porque foi sugerido para aquela data. Embora obviamente privilegie autores de língua inglesa, há poemas traduzidos de outras línguas, a exemplo de hai-kais de Bashô.
Mesmo mirando o público infanto-juvenil, o livro também traz poemas com conteúdo social ou psicológico mais complexo, o que faz com que possa ser lido tanto por crianças quanto por adultos. De ponto fraco, há a grande profusão de poesia de fundo religioso (praticamente metade do mês de dezembro é dedicado a textos sobre o Natal) e outras relacionadas a guerras e batalhas militares (em geral, chatos do doer).
Mas a experiência no geral foi fantástica, e não pude deixar de pensar, o tempo inteiro, em como seria maravilhosa uma iniciativa semelhante com 366 poemas em língua portuguesa, selecionados para marcar datas importantes não apenas no calendário oficial, mas também fatos políticos e históricos, potencializando a associação entre arte e crítica social. Olha o que eu colocaria:
25 de janeiro * Lira Itabirana, Carlos Drummond de Andrade
Nesta data, em 2019, ocorreu o rompimento da barragem de Brumadinho, numa das maiores tragédias socioambientais do mundo.
I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.
IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
8 de março * I, Micheliny Verunschk
Dia Internacional da Mulher
irmã, comi os pés do meu último marido.
por quê? por que você fez isso? desperdiçou as vísceras?
bonitos pés. e agora vou onde quero.
12 de março * O início, Carlos Pena Filho
Aniversário das cidades do Recife e Olinda
No ponto onde o mar se extingue
E as areias se levantam
Cavaram seus alicerces
Na surda sombra da terra
E levantaram seus muros
Do frio sono das pedras.
Depois armaram seus flancos:
Trinta bandeiras azuis plantadas no litoral.
Hoje, serena flutua, metade roubada ao mar,
Metade à imaginação,
Pois é do sonho dos homens
Que uma cidade se inventa.
… E por aí vai. As discussões possíveis são instigantes: pensando aqui, eu colocaria Navio Negreiro, de Castro Alves, no dia 13 de maio, com um texto explicativo sobre o abolicionismo, as engrenagens que levaram à Lei Áurea e porque essa data não é considerada pelo movimento negro. O dia 20 de novembro, seria, claro, dedicado a um(a) autor(a) negro(a) – penso em Conceição Evaristo, mas poderíamos também incluir rap, considerando-o como uma expressão de poesia urbana?
As possibilidades são incríveis!
E você, que poema da língua portuguesa colocaria nessa coletânea? Em que data, e porque? Coloca aí nos comentários! 🙂
“Profundamente” de Manuel Bandeira no dia 24 de junho! Acho lindo demais da conta! ❤
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que delícia de post. Solano Trindade, poeta negro tem muita força na palavra pra esse 29 de novembro.
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29*
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20, é 20 de novembro! Hahha
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hahahahaha, acontece! Adorei a dica! ❤
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No nascimento de Drummond, 31 de outubro, um poema da Matilde Campilho:
31 de outubro
No rádio do posto de gasolina, tocou uma canção que falava de Prometeu. Do estoicismo de Prometeu. Tanto quanto sei, nas últimas aulas de história e geografia, Prometeu foi quase o deus que mais acreditou na humanidade. Quase. Há outro. Mas P, aquele malandro, roubou o fogo do chefão para levá-lo aos mortais. Por causa disso foi amarrado à uma rocha por toda eternidade. Ha lá, agora não é hora para falar de castigos, muito menos de castigos que envolvam abraços aos rochedos. Íamos ficar horas discutindo arbitragem e as diferentes tonalidades de um cartão vermelho. Quem acredita num castigo, também acredita na chegada das setenta alegrias. Alguns acham isso, outros não. Hoje não é dia pra isso. Estoicismo. Hoje é a tarde em que noventa e dois corpos foram achados no deserto. Silêncio. Entre o Nigér e a Algéria vão tantos quilômetros de distância, deus. Hoje era aniversário do Dummond. Tinha aquele poema sobre a chuva e sobre o nome que toda mulher leva cozido no veludo, principalmente eu. Tinha aquele poema sobre o bonde que não veio, aquele poema sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas e, mais do que tudo, aquele, o amor. Carlos, você é telúrico. A noite passando em você e os recalques se sublimando. Lá dentro um barulho inefável: rezas, vitrolas, santos que se persignam. Anúncios do melhor sabão, um barulho que ninguém sabe de que, o quê. Você é a palmeira. Você é o grito que ninguém ouviu no teatro. Hoje é o dia que o terremoto atingiu Taiwan. Seis ponto seis, sabe-se lá em que escala. Sabe-se lá quantos fogos, quantas ondas de quarenta metros, quantos alicerces dobrados como se dobram as pernas dos grilos no outono norueguês. Em português não lhe chamamos Taiwan, sempre lhe chamamos Ilha Formosa. Faz parte dos quatro tigres asiáticos e, por falar nisso, acho que é sempre tempo de falar nisso, uma vez conheci um santo que não parava de repetir o mantra: “I never saw so many tigers”. Claro que isso não aconteceu no elevador de um hotel na Flórida, mas por causa dos movimentos das placas tectônicas, o mundo cada dia se aproxima mais do mundo. Só falta o verão aproximar-se mais do verão. Diabos. Faz um frio danado outra vez. O Lou Reed morreu essa semana. Naquele último retrato em branco e negro, ele tinha o punho todo cerrado, cabelo todo desalinhado, as orelhas como sempre do tamanho de um planeta. Acho que há um time qualquer se formando para além de nós. Um time de reis e profetas de orelhas grandes jogando as bolas por cima de nossas cabeças. Laurie Anderson, a mulher de Lou, escreveu uma nota para a secção de obituários de um pequeno jornal a serviço da comunidade de East Hampton. Que outono mais bonito, foi assim que ela começou. Que outono mais bonito e tudo brilha e aquela incrível luz suave. Desculpe o meu inglês, mas “Lou was a Tai-Chi master and spent his last days here, being happy and dazzled by the beauty and power and softness of nature.” Um príncipe, foi o que ela lhe chamou, um príncipe e um boxeur. Prometeu regenerava-se durante a noite, rosto encostado na umidade do rochedo, estômago aberto pelos pássaros. É assim que um deus faz um homem, é assim que deus faz valente. Os Red Socks ganharam o campeonato. 6 a 1. Mas ainda me falta saber tanta coisa sobre o baseball. Sei de um dono de bar que está disposto a explicar tudo. Até lá guardo a imagem daquele bastão sendo lançado até a arquibancada e caindo aos pés de um homem que chorou. Sempre achei que os Red Socks eram uma espécie de Botafogo norte-americano, portanto vai alegria. A Índia está no caminho para Marte. No próximo dia 5 é lançada a nave espacial que vai abrir as hostes àquela que é a primeira missão interplanetária indiana. Eles esperam que o bicho entre arrastando fogo até o planeta vermelho lá para setembro do ano que vem. Eu espero que o bicho leve no bolso o recadinho do Ray Bradbury dobrado em quatro partes, aquela onde ele explica assim: “É bom renovar o espanto da gente, disse o filósofo. As viagens no espaço fizeram-nos a todos, de novo, crianças.” Em Maputo, como se isto no mundo fosse um castelo de cartas que afinal só quer cair na paz, aconteceu aquela que já chamam a maior manifestação não-governamental do que há memória. Na ilha formosa a temperatura agora é de, exatamente, 24 graus. O Carlos se fosse vivo fazia 111 anos. Obrigada homem, obrigada. “O amor é isto que você está vendo.”
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No dia 8 de dezembro, aniversário da avenida Paulista, este poema de @thiagocalle
pasme
a calçada rolante da paulista
não nos
deixa
apreciar
O
vão
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