Quem já passou pelo vão livre do Masp, em São Paulo, certamente ouviu a pergunta do título deste post. Ela nos deixa em uma sinuca de bico. Quem diz que não gosta pode levar a pecha de insensível ou burro. E quem responde afirmativamente passa a ter um poeta fazendo o pregão do seu livro até torrar a paciência do ouvinte, que pode comprar só pra deter o palavrório. Mas não foi bem assim a abordagem que eu e Renata recebemos em uma noite do último verão, quando tomávamos uma cerveja na calçada da rua dos Pinheiros.
Um moço se aproximou e pediu licença para mostrar seu trabalho de poesia, com um livro minúsculo na mão. Eu já ia dizendo que não queríamos, quando o olhar de censura de Renata abriu a porta para Thiago Calle se apresentar. Marido obediente, entrei no jogo e entabulamos a conversa. E não é que ele tinha jeito pra vender sua obra? Narrou rapidamente sua trajetória e mostrou o simpático e atraente livrinho que trazia nas mãos, com essa capa bacanuda, coisa de design gráfico de primeira.
Enquanto Thiago falava de sua poesia, da vida na periferia, do projeto Jazz na Kombi e emendávamos a conversa falando sobre poesia marginal e Miró de Muribeca, cuja obra ele conhece – e que já foi uma credencial a mais para gostarmos dele -, folheei Cromo tinta cor espelho, o livro. A beleza da capa também se espalhava pelo miolo, com uma diagramação arrojada e ilustrações do autor, que também se dedica à arte do grafitti. Faltava apenas um detalhe: seria boa a poesia? A decisão foi tomada quando me deparei com esse verso certeiro:
“
tudo posso
entre aspas
”
Feita a compra, convite para uma cerveja recusado, lá se foi Thiago perambular entre as mesas para ganhar seu pão com o ofício da poesia. E os autores do Lombada foram à leitura, nas semanas seguintes. Primeiro foi Renata. E os comentários foram muitos e muito bons. Numa tarde preguiçosa de sábado foi a minha vez. O livro é pequeno, leitura rápida, que exige atenção para as sacadas do poeta. Li uma primeira vez, em uns 15 minutos. Na segunda leitura fui me demorando mais em cada poema, reparando a disposição gráfica dos versos, as manchas de tinta, as ilustrações grafiteiras e a bela e curta introdução de Marcelino Freire, que afirma “que descobrir um poeta não é fácil”, ao menos uma “poesia que valha.” Porque, segundo o pernambucano, “poeta de verdade não pontua. Não aponta. Não pula linha. Poeta que é poeta vai logo. Direto ao abismo. E nos leva. No mais fundo é que se lança. Sobe. E desce. Feito um grafiteiro que nos inscreve. Lá no alto da cidade. O nosso destino. É assim com Thiago Calle. Ave nossa.”
Pois é essa poesia das coisas da cidade, quase que como versos grafitados nas empenas cegas ou pixados nos muros e altos dos prédios que a obra de Calle se espalha pelo olhar do leitor. Poemas curtos, tiros certeiros, feitos de versos cheios de ritmo, de interrupções, de um certo non sense, sem lirismo fácil, como em O coveiro, ou o jogo de palavras de Agouro e a poesia concreta com as letras do poema em queda, tal qual o avião.
Alguns textos são pequenas crônicas poéticas das ruas da cidade. Notívagos, bêbados, agitadores culturais, as calçadas moventes da Paulista, as luzes dos bares, o som de Coltrane, o amor perdido mas nunca esquecido. A temática de Thiago Calle é ampla e diversa, como é a cidade em que nasceu, vive e onde sua poesia se espalha entre os afortunados leitores que lhe dedicam um minuto de atenção para, por fim, comprar o livro e gostar de poesia. Thiago está aqui, no Facebook e também aqui, no Instagram. Vale a pena seguir e conhecer as muitas faces desse artista das ruas, das telas e dos versos.
A edição de Cromo tinta cor espelho é de 2016, da Edições Maloqueiristas, um coletivo que surgiu do encontro de poetas que veiculavam seus libretos pelas ruas que tem um acervo a ser explorado.
Comi o cu de quem tá lendo #bolsonaro2022
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Parabéns pelo belo texto, ele já uma poesia. Parafraseando alguém “Quem não gosta de poesia, bom sujeito não é”.
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Nossa, que honra um comentário assim. Poesia nos mantém vivos.
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