Olha. Tenho que começar confessando que sou mais fã do Chico Buarque compositor e dramaturgo do que o romancista. É verdade que gosto muito de Estorvo e Budapeste, mas nenhum de seus outros romances me pegou tanto quanto a peça Gota D’água (que já resenhei aqui) ou qualquer de seus clássicos da MPB, como Construção ou Roda Viva. Mas alguém que escreve uma canção chamada Renata Maria merece uma leitura atenta de qualquer coisa que já tenha escrito ou venha a escrever no futuro – e obviamente, este comentário é totalmente destituído de interesse pessoal.
Eu sei que essa não é a forma mais empolgante de começar uma resenha, mas fiquem comigo enquanto eu escrevo sobre Essa gente, o mais novo lançamento de Chico Buarque pela Companhia das Letras. Porque, quando nada, o livro é um ótimo exercício de criação a quente sobre esse bizarro ano de 2019. Quando um país vive um trauma como a eleição de um asno à presidência da República, é esperado que a arte reaja a isso de alguma forma. No caso de Chico Buarque, foi escrevendo um romance farsesco, que é crônica e autoficção, com muita, mas muita ironia.
A começar pelo nome, profissão e vida amorosa do personagem principal: Duarte (olha a rima) é um escritor à beira do ostracismo, tentando viver de reedições do seu romance de maior sucesso enquanto enrola o editor, sem conseguir avançar no novo livro. Enquanto isso, vive uma relação conturbada com duas ex. Uma é mãe do seu filho, que é também sua revisora (mais para co-autora) e para junto de quem ele se muda quando a grana aperta. A outra é a mulher mais jovem pela qual ele trocou a primeira, e na sequencia o troca por um homem mais rico.
Duarte leva a vida como se não fosse com ele: nem os problemas de comportamento do filho, nem os aluguéis vencidos, nem o chifre, nem o tiroteio na favela vizinha, nem a violência policial que testemunha. Mas não deixa de sofrer certo incômodo quando é elogiado pelos porteiros da rua ao ser flagrado com um revólver na cintura (não darei spoilers) e olhado torto quando faz o mesmo trajeto com uma garrafa de uísque. O incômodo também aparece quando menciona os cantores castrati de um coral e um músico negro assassinado com 80 tiros por soldados do exército, no carro em que estava levando a família para um batizado. O protesto do cantor/compositor aparece, portanto, indiretamente.
É assim, pelos olhos de um alienado, que Chico Buarque apresenta um retrato assustador do Brasil atual, especialmente de sua elite, inclusive a intelectual. Duarte é o artista isentão, alienado, mas que por ser artista não consegue deixar de enxergar, ainda que não tenha o impulso de agir. Ainda assim, taxado de comunista, vê o filho ser perseguido na escola. Mais uma vez não age, deixa que a ex-mulher e uma amiga vão até a escola de camisas vermelhas e emblemas improvisados da foice e martelo para pressionar a direção.
A elite intelectual da qual Duarte é representante não está letárgica apenas diante do autoritarismo crescente na política e sociedade brasileiras; a letargia é também herança genética e se expressa por uma indiferença que é chancelada pela cor da pele, como nesse trecho em que o escritor conversa com um guarda-vidas na praia:
– Você no livro é branco ou preto?
– Hein?
– É preto ou branco?
– Boa pergunta.
Percebo que nos romances nunca me preocupei em explicitar a minha cor. É curioso que, num país onde quase todo mundo é preto ou mestiço, autor nenhum escreveria “hoje encontrei um branco…” ou “um branco me cumprimentou…”, ou “o sargento Agenor é um branco bonito de presumíveis quarenta anos, se bem que os da sua raça…”
Sintomático que, mesmo depois dessa breve epifania, Duarte continue se exprimindo com um inegável racismo.
Essa gente pode não ser um livro genial, mas é um excelente registro do limbo contemporâneo. Uma nota sobre o título: “essa gente”, uma expressão tão simples, e que vem sendo usada com indisfarçável ódio ao longo dos últimos dois séculos. Só quem já esteve do outro lado de um “essa gente” sabe do que eu tô falando. Não por coincidência, é “dessa gente” que vêm os gritos mais agudos contra a decadência da democracia brasileira.
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