‘2001’ – o livro e o filme

Sou uma das pessoas privilegiadas que viu 2001: uma odisseia no espaço no cinema, e mais de uma vez. A primeira foi quando o ano de 2001 se aproximava, eu estava no meio da faculdade de jornalismo e o filme, é claro, foi restaurado para exibições especiais que marcariam a chegada do século XXI. Ao longo das duas décadas seguintes, o revi de novo em casa um par de vezes. A última foi no cinema, no final de 2018, numa sessão do Projeto Replicante. Nesta última assistida, percebi uma coisa que me fez, finalmente, ler o livro, que já esperava na minha estante há alguns anos.

Eu havia comprado 2001 por impulso numa feira de literatura em 2014, entre vários outros livros de ficção científica. A ideia era ler logo, mas desanimei depois de ver em algum lugar que o livro não havia dado origem ao filme, e sim o contrário. A verdade é um pouco mais complexa: Arthur C. Clarke escreveu o romance enquanto trabalhava no roteiro do filme junto com o diretor Stanley Kubrick. Como o próprio escritor explica na introdução, sentia a necessidade de elaborar em mais detalhes a cosmogonia do que iria pra tela. Acabou que a produção do filme também influiu no romance, num processo criativo de retroalimentação que não é lá muito comum.

Clarke já era um bem-sucedido autor de ficção científica quando Kubrick o procurou com a proposta de desenvolver o roteiro de 2001. A esta altura, ele também já era um diretor consagrado, tendo levado às telas sucessos como Glória feita de sangue (1957), Spartacus (1960) e Lolita (1962). Quando resolveu produzir um filme de ficção científica, a conquista do espaço estava à toda: os soviéticos haviam lançado o primeiro satélite artificial em 1957, Yuri Gagarin constatara que a Terra é azul em 1961 e os Estados Unidos estavam prestes a ser os primeiros a pisar na lua – o que aconteceu em julho 1969.

2001 estreou nos cinemas em 1968, quando todo esse movimento suscitava questionamentos sobre o lugar da humanidade no universo. Estaríamos sós? Haveria seres vivos em outros planetas? Em caso positivo, eles já estariam viajando pelo espaço, como começaríamos a fazer em breve? De onde viemos, e para onde vamos? Kubrick não queria fazer um filme de ficção científica apenas, mas utilizá-la – e a todo o contexto real da corrida espacial – para realizar uma obra épica, que abordasse questões existenciais como estas.

Além de tudo, ele já tinha cacife o suficiente para garantir um orçamento que permitisse investir numa produção de alto nível. De fato, o filme continua impressionando pela atualidade de seu design. Perto de 2001, o primeiro filme da franquia O planeta dos macacos, lançado no mesmo ano, fica parecendo um TCC.

Mas afinal, o que livro e filme têm em comum? E quais são as diferenças? A partir daqui, o texto contém spoilers.

A narrativa de um e outro correm em paralelo: em ambos, tudo começa com uma tribo de hominídios lutando pela sobrevivência, quando ainda não tinham atinado para a serventia do polegar opositor. Um belo dia, um monolito negro surge no meio de uma clareira e parece atrair a atenção dos projetos-de-humanidade; a partir disso, eles descobrem a caça, o fogo e as armas. Da morte de uma capivara pré-histórica à conquista do espaço, foi um pulo – ou um osso jogado pra cima ao som de Assim falou Zaratustra.

Já seria muito difícil competir com a suntuosidade visual e a trilha sonora do filme, mas a verdade é que o livro de Arthur C. Clarke peca por entregar o jogo cedo demais. Enquanto na obra de Kubrick a primeira meia hora é de quase total silêncio, os capítulos iniciais do romance são explicativos quase às raias da chatice. A origem, o objetivo e os efeitos do monolito são revelados no primeiro terço, e é esta a pegada quase até o fim.

O miolo do livro é o que mais se aproxima do filme: acompanhamos um cientista em translado à lua, onde irá tentar desvendar a misteriosa aparição de um monolito – igual ao dos hominídios – que aparenta estar emitindo sinais magnéticos para o universo. Corta novamente, e estamos dentro da espaçonave Discovery rumo ao planeta Saturno (no filme, Júpiter), acompanhando a jornada de cinco astronautas (três deles hibernando) e do computador HAL.

Nesse miolo, a obra de Clarke ilumina algumas questões técnicas que embasaram o partido visual do filme – como as naves circulares que giram sobre um eixo para manter a percepção artificial da gravidade. Também sabemos um pouco mais sobre HAL, uma inteligência artificial hiper-desenvolvida que eventualmente começa a sabotar os humanos para – acredita ele – aumentar as chances de sucesso da missão.

No terço final, quando o astronauta David Bowman é forçado a desligar HAL para continuar vivo, livro e filme se afastam novamente. Não exatamente na narrativa, mas na diferença dos níveis de explicação. Enquanto Kubrick escolheu um caminho totalmente aberto para o fim da expedição – com uma dose sensacional de psicodelia visual – o livro mergulha novamente numa sanha explicativa. Não tanto como no começo, mas o suficiente para que se distancie bastante do final proposto pelo filme que, de tão aberto, pode ser qualquer coisa.

-.-.-

No começo desse texto, mencionei um aspecto do filme que só me chamou a atenção na última vez que o vi no cinema. Fiquei tão obcecada com isso que passei os meses seguintes procurando referências, estudos, teorias conspiratórias e, finalmente, acabei lendo o livro. Pode parecer viagem, mas garanto que não é: 2001: uma odisseia no espaço é um filme sobre a tecnologia da alimentação.

Falei disso para algumas pessoas: algumas riram e a maioria fez cara de miga-sua-louca. Os que também tinham visto o filme recentemente super embarcaram na minha viagem. Fica comigo, que o bagulho é doido.

Na primeira parte de 2001, acompanhamos uma tribo de hominídios à beira da morte por inanição, catando grama para sobreviver. Tudo muda quando eles percebem que poderiam comer a carne de outros animais mortos; depois, que poderiam usar o fogo; finalmente, que poderiam eles mesmos provocar a morte de outros animais para comê-los. É exatamente nesse ponto – quando um dos macacos tem o insight de usar um osso como arma – que o filme dá o salto para o espaço.

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Alguém poderia argumentar que o ponto de virada da narrativa foi a violência, e não a alimentação. Não deixa de ser verdade, mas neste caso a violência é apenas instrumento para uma finalidade – não passar fome. A leitura do livro me confirmou que essa era uma questão fundamental na gênese de 2001: de fato, Clarke gasta longas frases construindo o quadro de inanição que mantinha os hominídios perpetuamente à beira da morte; depois, como a descoberta da carne possibilitou que fossem se tornando sedentários e dominassem o território.

Clarke volta algumas vezes ao tema sem tanta ênfase, mas Kubrick faz questão de apresentar, a todo momento, cenas relacionadas à tecnologia da alimentação. Tanto no ônibus espacial que leva Floyd à lua quanto na Discovery, o momento de comer é enfaticamente pontuado. Na espaçonave, a comida é servida em forma de patês, para não sair voando cabine afora; no livro, há uma longa explicação sobre o uso de um molho viscoso para manter a salada no prato durante a viagem no ônibus espacial. Em algum momento do filme, alguém como um sanduíche de “algo parecido com frango”.

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Claramente, não há nenhum prazer naquelas refeições ultraprocessadas servidas no espaço; ao mesmo tempo, a tecnologia envolvida no armazenamento e forma de apresentação da comida é parte fundamental do que permite a exploração espacial (imagine como seria comer um arrumadinho em gravidade zero – farinha, carne seca e vinagrete flutuando pra todo lado). Clarke se aprofunda mais nesse aspecto.

Agora, tente se lembrar do final do filme. Depois de entrar em algo que pode ser um buraco negro (ou apenas alucinação), Dave acorda envelhecido em um quarto com decoração vitoriana e encontra uma mesa de jantar com serviço à francesa. Essa é uma das últimas cenas do filme, que termina, bem ao estilo de Kubrick, com infinitas possibilidades de interpretação.

Se você ainda acha que eu sou doida, saiba que não estou sozinha no hospício. Enquanto obcecava com essa ideia no ano passado e atormentava um amigo que é historiador da alimentação para explorar a possibilidade em um artigo (“escreve tu”, me respondeu ele), encontrei esse post no Gizmodo, que remete a este outro ensaio (ambos em inglês).

Como já pontuado, o tema também aparece ao longo de todo o livro, mas sem a pungência visual do filme pode acabar passando despercebido. Fato é, ainda nos preparativos do roteiro, Clarke mantinha um diário. No dia 28 de novembro de 1964, ele anotou: “Liguei para Isaac Asimov para discutir a bioquímica de transformar vegetarianos em carnívoros”. Essa é, claramente, a questão central de toda a primeira parte da narrativa.

Mas e aí, tia, o livro vale a pena? Olha, sim. Chato que seja em sua mania de explicação, Clarke ilumina algumas questões interessantes e foca em alguns caminhos de interpretação, algo que deve agradar quem busca sentido em tudo. A edição que eu li é da editora Aleph, especializada em ficção científica. É um belo volume completamente preto, numa referência ao monolito da história, acompanhado de uma luva onde vem impressa a capa.

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Por mim, fico com toda a psicodelia visual que Kubrick imprimiu a 2001, um clássico incontestável da cultura do século XX.

PS: Já faz uns posts que paramos de indicar o link da Amazon para compra de livros. O blog recebia uma pequena comissão por cada compra gerada a partir daqui, mas acompanhamos de perto os perrengues que as pequenas editoras atravessam com as práticas de concorrência desleal da Amazon. Por isso, deixaremos de divulgar o link e indicaremos, sempre que possível, a loja das próprias editoras.

6 comentários sobre “‘2001’ – o livro e o filme

  1. O texto faz sentido, e não pude evitar lembrar da frase machadiana “Ao vencedor, as batatas”, que reforça a ideia da luta humana pela alimentação/ sobrevivência. Em tempo: assisti ao filme pela primeira vez na época em que foi lançado (era menina e não entendi patavina) depois votei fã .

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  2. Já vi o filme (algumas vezes na verdade) e agora quero o livro. Obrigado por compartilhar. Há tempos não ouvia falar sobre.
    Abraços,
    Gustavo Woltmann

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