Emicida para crianças

Crianças com medo de escuro são um clichê imemorial, talvez uma espécie de instinto atávico de autopreservação que perdura desde que corríamos o risco de ser arrastados do nosso acampamento naendertal no meio da noite por uma onça faminta. Pelo sim, pelo não, melhor ficar perto do fogo e evitar as frestas por onde vêm os predadores, diz-nos nosso DNA, até hoje. Eu, por exemplo, não durmo com porta de armário aberta, ao melhor estilo Monstros S.A.

É por esse caminho que começa E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas, livro infantil do multiartista Emicida, que saiu esse ano pela Companhia das Letras, com ilustrações de Aldo Fabrini: na hora de dormir, uma garotinha chama o pai com medo de tudo o que pode sair da escuridão enquanto ela dorme. Mas o plot twist vem bem na página seguinte, quando outra garota, uma vampirinha numa espécie de mundo ao contrário, chama sua mãe com medo do amanhecer.

Em apenas quatro páginas e duas dúzias de palavras, Emicida apresenta duas formas possíveis de viver, instiga a entender as diferenças e constrói o caminho para mostrar que, no fim das contas, é “tudo é uma questão de olhar”.

Às vezes, o que nos assusta,
tem muito da gente.
(só é um pouco diferente!)

Quem nos acompanha aqui no Lombada há mais tempo sabe que não tenho e nem pretendo ter filhos, mas consumo literatura infantil com alguma frequência. Fico imaginando a reação de crianças ouvindo ou lendo as histórias e fazendo aquela cara de confusão quando, logo de cara, aparece alguém com medo da luz.

Na hora de escrever uma resenha, é impossível não olhar além das páginas e levar em conta a existência de Emicida como artista negro, voz que se coloca com potência sobre a questão racial e sobre a diversidade no Brasil, não apenas nas músicas e entrevistas, mas em toda sua criação comercial e artística.

Pra quem não sabe, ele fundou há alguns anos a LAB Fantasma, uma empresa que faz de produção cultural à moda streetwear, passando por edição de livros (E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas é uma co-edição entre Companhia das Letras e LAB) e empreendedorismo social.

A LAB realizou um desfile absolutamente memorável na São Paulo Fashion Week de 2016, levando às passarelas modelos (homens e mulheres) negros, asiáticos, gordos e pessoas com vitiligo – diversidade como princípio, não como cota, atitude bastante aplaudida pela audiência e pela crítica, mas jamais reproduzida por outras marcas. “Fiz com a passarela o que eles fez com a cadeia e com a favela: enchi de preto”, era o refrão da música, interpretada pelo próprio Emicida durante o desfile.

Dessa forma, fazer uma leitura política do seu livro infantil é tentador: a personagem de uma garotinha que tem medo da luz pode ser interpretada como uma metáfora no contexto de um País em que policiais se comportam como os bandidos e promovem a perseguição deliberada à população negra, que vive em permanente estado de alerta.

Fazer isso, no entanto, é incorrer no risco de fechar o autor num tema adequado em tempos de Black Lives Matter, o que é outra forma de delimitar os espaços de artistas negros e os temas de que podem falar, solapando sua existência como pessoas inteiras, com interesses e sentimentos múltiplos.

“Às vezes um charuto é só um charuto”, já disse Freud quando lhe perguntaram o que significava esse hábito. E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas pode ser apenas o resultado da criatividade de um pai em construção, observando a filha crescer e fazendo o que todos os pais fazem (bem, não todos) – tentar pavimentar seu caminho pro mundo.

2 comentários sobre “Emicida para crianças

  1. Adoro o Emicida e todo o posicionamento político do seu trabalho. Por mais artistas assim! Que se preocupam com causas reais.
    Abraços,
    Gustavo Woltmann

    Curtido por 2 pessoas

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