Redenção, fé e Justiça no último suspiro de Tolstói

“A história das personagens de Tolstói é sempre a história da descoberta e da compreensão de uma realidade: que se revela rica e violenta e acidentada e complexa, dolorida e generosa e sangrenta como os olhos da fantasia não souberam imaginá-la.”

É assim que a genial Natalia Ginzburg abre o prefácio ao romance Ressureição, de Liev Tolstói, na recente nova edição brasileira publicada em 2020 pela Companhia das Letras com tradução, diretamente do russo, de Rubens Figueiredo. Esse é um ponto importante nas recentes edições dos escritores russos que têm sido publicadas por diversas editoras. Em lugar de traduzir de versões para o francês ou o inglês, há um investimento em traduções diretas, que dão um enorme ganho de qualidade para os leitores.

Ressurreição foi o último romance que Tolstói publicou em vida, no ano de 1899, em fascículos. Àquela altura, o escritor já tinha passado pelas descobertas religiosas e abraçara a causa de um grupo de cristãos fundamentalistas fortemente perseguidos pelo regime tzarista. Os direitos autorais do romance, por exemplo, foram doados para os dukhobóri, cujos remanescentes que não estavam presos ou mortos migraram para o Canadá, onde até hoje existe uma comunidade religiosa descendente dos russos protegidos de Tolstói.

E Ressurreição é um romance completamente dedicado a alguns dos temas mais caros a Liev. Nele, o leitor encontra pesadas críticas à elite russa e ao tzarismo, questionamentos incisivos sobre a religião oficial do regime e o “teatro” da fé ortodoxa, preocupada em adular o poder e ao mesmo tempo manter os fiéis na absoluta ignorância e miséria. Reflexões sobre o conceito de propriedade privada, sobre as quais falaremos mais adiante, longas digressões sobre o conceito de Justiça que vão culminar em um profundo questionamento sobre a eficácia do sistema prisional. Sempre tendo como pano de fundo a honra e a moral.

A obra derradeira de Tolstói prenuncia a grande crise do império russo. As agitações camponesas, greves e movimentos pela derrubada do Tzar tomam conta do cenário político da Rússia dos últimos 20 anos do século XIX. Quando a obra foi publicada restavam apenas mais 18 anos de regime imperial. E os braços do bolchevismo já começavam a ganhar musculatura para a revolução de 1917. Liev morreu em 1910 e não assistiu à derrocada dos tzares, a quem odiava e por quem foi perseguido em vários momentos de sua vida. Mas, se vivo estivesse, tampouco simpatizaria com os revolucionários. São muitas as críticas do personagem de Ressurreição às ideias socialistas que vinham da Europa ocidental e tomavam conta de diversos movimentos políticos.

E quem afinal é o herói do romance? Em mais de 400 páginas vamos conhecer a vida, os pensamentos e a saga de Nekhliudóv, um jovem príncipe, herdeiro de terras e fortunas, com um passado recente em carreira militar breve e intensa e que tem pela frente escolhas a fazer. Perto dos 30 anos, amante de uma cortesã casada, boêmio nos tempos de exército, colecionador de aventuras, está às voltas com dramas de consciência em relação ao romance proibido (nem tão proibido assim em uma sociedade na qual as aventuras extraconjugais eram quase sempre conhecidas e só chegavam a provocar duelos quando se tornavam escancaradas). Nekhliudóv está entre “casar ou comprar uma bicicleta”, pois, enquanto pensa em terminar a aventura faz a corte a uma princesa cobiçada e milionária. Seria o casamento perfeito, se o jovem quisesse mesmo casar.

E aí entra em cena o primeiro grande plot twist do romance. Entre um afazer e outro – que para um príncipe significa escolher as roupas do dia, ler correspondências sobre suas propriedades e decidir qual dama da sociedade irá visitar naquela noite – ele tem um dever de cavalheiro. Terá de participar de um Tribunal do Júri. Nekhliudóv encara essa missão como um dever de cidadão e de integrante da nobreza. Mesmo contrariado com os atrasos que esse compromisso acarretarão em sua agenda, vai ao Tribunal para cumprir sua honrosa tarefa.

A cena do tribunal vai definir toda a vida do jovem príncipe dali em diante. Em meio a casos banais, aparece o julgamento de um trio. Duas mulheres e um homem, acusados de envenenar e roubar um rico comerciante em um quarto de hotel. Uma das mulheres e seu namorado eram funcionários do hotel. E a outra moça, Máslova, uma prostituta que havia sido contratada pelo avantajado comerciante. Quando ela se senta no banco dos réus o jovem herói tolstoiano tem um choque. Depara-se com uma cena do passado que gostaria de esquecer. A jovem e belíssima Máslova havia sido seduzida por ele anos antes, na propriedade rural das tias de Nekhliudóv, onde ele costumava passar temporadas de férias. Era um fato apagado de sua memória. Mas ao ver a moça em tal estado de degradação, acusada de um homicídio, começa uma longa reflexão sobre seus últimos dez anos de vida, seus valores morais e o que efetivamente projeta para o futuro que se avizinha.

E toma uma decisão: vai promover uma reparação em relação ao mal que julga ter feito a Máslova.

A cena do Tribunal é magistral e começa a colocar nas reflexões de Nekhliudóv os primeiros questionamentos sobre a efetividade da justiça. Especialmente porque um erro do advogado de defesa e uma forte indução do presidente da corte levam o júri a considerar Máslova culpada, mesmo com total falta de evidências de que ela tenha participado do crime.

A jovem é condenada a trabalhos forçados da Sibéria. Como há prazo para recurso, ficará provisoriamente em uma penitenciária nos arredores de Moscou. É o tempo que Nekhliudóv acredita ser suficiente para começar sua redenção. Mexendo seus pauzinhos na aristocracia ele consegue permissão para visitar a jovem, que não o reconhecera no Júri, e se apresenta a ela mostrando seu arrependimento pelo passado, a firme disposição em pagar os melhores advogados e, mais espantoso, se casar com ela como forma de lhe restaurar a honra. A moça reage mal, assustada com tal proposta. Mas aceita a ajuda.

Se você chegou até aqui, peço desculpas pela longa descrição. Saiba que basicamente fiz um resumo das primeiras 50 páginas do romance.

É a partir dessa decisão intempestiva que começam a se desenrolar os grandes temas que Tolstói traz para a história de Nekhliudóv e Máslova.

A brutalidade do sistema prisional, os debates da época sobre a eficácia das penas longas e das condições desumanas dos cárceres, o papel sórdido da religião na manutenção do status quo do império russo, a forte tensão social que permeia as relações entre trabalhadores e patrões em um país que começa a botar o movimento revolucionário em ponto de fervura. Tudo isso vai aparecendo nas andanças de Nekhliudóv entre tribunais de apelação, acessos privilegiados a magistrados, procuradores e até ao gabinete do imperador, o último que poderia conceder o perdão à condenada.

Enquanto isso, Nekhliudóv começa a se preparar para mudar de vida. Abandona seu espaço apartamento, vai morar em um modesto hotel e, frequentador assíduo da penitenciária começa a olhar para a situação de vários presos, tornando-se uma espécie de defensor deles, pedindo abrandamento de penas, denunciando as más condições do cárcere, as torturas e as prisões por motivos políticos e religiosos, que eram a maioria.

A crítica da época não recebeu bem o romance, que teve poucas edições e traduções. Ainda hoje há quem aponte Ressurreição como um libelo religioso. Sinceramente, não enxerguei a história por esse prisma, embora Nekhliudóv seja um crente em deus e, ao mesmo tempo, profundamente anticlerical.

O que ficou para mim da leitura foi a história de uma pessoa que busca a redenção adotando ideias fixas, sem nuances. Nekhliudóv não consegue lidar com as recorrentes recusas de Máslova à ideia de um casamento.

O jovem também questiona sua fortuna e, assim como Tolstói fez em sua vida, tenta repassar para os camponeses de suas inúmeras terras, o controle da propriedade. Atitude que provoca escândalo na nobreza e desconfiança nos trabalhadores, assim como aconteceu com a malograda tentativa real de Tolstói.

Por fim, a narrativa traz uma das características marcantes na obra de Liev Tolstói: a repetição, tanto de palavras em uma mesma sentença, quanto de ideias que volta e meia reaparecem em meio às reflexões e embates de Nekhliudóv. O que poderia parecer um defeito me soa como um recurso estilístico muito bem urdido pela prosa densa e ao mesmo tempo fluída de Tolstói.

Ressurreição deve ser lido sem as expectativas que Ana Karienina ou Guerra e paz trazem pela fama que carregam ou sem esperar a perfeita concisão de A morte de Ivan Ilitchi, mas não se trata de uma obra menor, talvez porque seja difícil encontrar algo menor em Tolstói.

P.S.: a tela em destaque é do artista russo Kandinsky e retrata uma aldeia do interior, como as muitas que Nekhliudóv vê passar pela janela do trem em sua viagem à Sibéria para tentar manter viva a promessa de casamento com Máslova.

2 comentários sobre “Redenção, fé e Justiça no último suspiro de Tolstói

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