“Como cacete chegamos nesse ponto?” é certamente a pergunta mais repetida na última década. Estamos em quarentena há quase um ano e somos os sortudos que sobreviveram; mais de 2,2 milhões de pessoas em todo o mundo não tiveram a mesma sorte, sendo 30% brasileiros e americanos, governados por negacionistas. Um deles acaba de ser derrotado em eleições democráticas cujos resultados fez de tudo para contestar, e saiu do cargo não sem antes provocar uma crise civil sem precedentes. O outro continua mais preocupado com leite condensado e chiclete do que em arranjar oxigênio para pacientes de Covid-19 morrendo por asfixia.
Como cacete chegamos nesse ponto?
Professor do excelente curso Justice, oferecido gratuitamente pela Universidade de Harvard sobre filosofia política, Michael Sandel compartilha sua visão sobre essa derrocada moral em A tirania do mérito – o que aconteceu com o bem comum, publicado em 2020 no calor da pandemia, com edição nacional pela Civilização Brasileira. O autor analisa as últimas quatro décadas da política norte-americana para demonstrar como e porquê os laços sociais se desmantelaram ao ponto de chegar na falta de ação política contra a Covid-19.
A ascensão da meritocracia neoliberal e, com ela, da tecnocracia na gestão pública, está na base do argumento de Sandel: resumidamente, a eleição de recente de populistas autoritários em várias partes do mundo seria uma reação de maiorias deixadas para trás pelas formas meritocráticas de acesso a melhores condições de vida – a universidades, a empregos bem remunerados, à participação no debate público.
Segundo Sandel, a ideia de que todos têm as mesmas oportunidades diminui legião de pessoas não apenas excluídas, mas acusadas implicitamente de que isso ocorreu por sua própria culpa. O ressentimento gerado nesse processo é o que explicaria a votação massiva em figuras como Trump – uma espécie de vingança contra o estado de coisas que privilegia a qualificação intelectual e a riqueza.
Sandel usa como exemplo basilar a disputa acirrada às vagas nos cursos das cinco universidades da Ivy League (as mais importantes dos EUA), uma corrida que movimenta adolescentes de todo o País e suas famílias. Entrar na Ivy League é como a chave para uma vida de sucesso per se, independente do que será a vida acadêmica na prática. Para deixar claro seu ponto, logo de cara, ele recorre aos escândalos de compra de acesso entre famílias ricas, com destaque para os pais que escondem o “empurrãozinho” aos filhos candidatos – é o que ele chama de o brilho emprestado do mérito.
“Se tudo o que realmente importava para eles [pais e mães trapaceiros] fosse possibilitar a prole viver em abundância, poderiam ter dado a ela fundos fiduciários. Mas eles procuravam algo mais – o sinal distintivo meritocrático que o ingresso às faculdades de elite confere”.
A velha história da mulher de César: não basta ser rico; o essencial é que a riqueza pareça, não herdada, mas conquistada pelo próprio esforço. Ou seja, trata-se de uma questão essencialmente ética e moral.
Para embasar seu raciocínio, Sandel faz uma revisão da história do mérito principalmente quanto à luz das religiões. A meritocracia triunfa quando o acaso (ou a decisão divina) sai da equação, e o indivíduo considera que tudo o que conquista vem de fato por esforço próprio. De forma semelhante, quem não tem sucesso é porque não se esforçou o suficiente.
Sandel, é claro, rechaça esse pensamento. Aqui, o livro cruza com um dos argumentos principais do curso Justice: a família na qual nascemos, a cor da nossa pele, o fato de que um determinado talento é mais valorizado que outros – nada disso é fruto de empenho, mas mero acaso, que a meritocracia faz questão de desconsiderar, assim como o azar dos que se dão mal, jogando sobre estas pessoas o peso exclusivo do fracasso.
Para Sandel, esse processo minou a sensação de estima social de que os americanos de classes baixas já gozaram. Hoje, lamenta, o debate público ficou encapsulado na bolha dos que têm curso superior, beneficiados por uma globalização que solapou a dignidade do trabalho, enquanto premiou o financismo improdutivo.
Sandel dá especial destaque aos discursos dos últimos presidentes americanos anteriores a Trump para mostrar como a meritocracia aparece num crescendo, indistintamente entre republicanos e democratas, até chegar ao auge com Obama. O raciocínio não é tão claro quanto em Justiça (há um livro derivado do curso) e o argumento de que Trump seria resultado desse processo não é autoevidente, já que o próprio recorre à imagem do mérito e da pretensa inteligência acima da média para justificar sua fortuna.
De toda forma, os argumentos de Sandel são fortes, e eu os relacionei várias vezes ao documentário A Terra é plana. Quando o assisti há cerca de um ano, fiquei bastante impressionada com a sensação de que o movimento terraplanista era no fundo, uma tentativa de vingança ressentida de pessoas pouco esclarecidas contra uma ciência que ninguém tentou lhes explicar direito – uma vingança contra o mérito de quem entendeu que a Terra é redonda e entrou direto no clubinho dos inteligentes.
A conclusão final de A tirania do mérito é interessante: para Sandel, uma sociedade bem sucedida deveria garantir a possibilidade de prosperar mesmo a quem não ascende socialmente; condições de vida dignas e descentes a quem trabalha em atividades produtivas; e, principalmente, a possibilidade de participar do debate público em condições de igualdade, não importa o nível de estudo ou classe social.
Nunca esqueço de um debate que tive anos atrás quando Tiririca foi eleito deputado pela primeira vez. “Este cargo deveria ser exercido apenas por quem é preparado para tal, não por um palhaço”, argumentou um amigo. Eu tinha acabado de voltar de um encontro de comunidades quilombolas no interior de Pernambuco e contra argumentei que, muito mais importante do que a formação, era a capacidade de liderança e o compromisso com a comunidade. Estávamos já no fim do segundo mandato de um presidente da República que havia sido operário metalúrgico.
O livro não esgota o tema e acho que será melhor aproveitado por quem estiver disposto a ler sobre a crise da democracia sob outros aspectos (aqui, mais uma dica sobre o tema). Mas traz ao trazer o aspecto moral para o debate, nos reconecta à essência ética e filosófica do pensamento democrático, algo que o processo eleitoral às vezes deixa obscurecido.
PS: O curso Justice tem legendas em Português. Já falei dele em vários outros posts, e realmente vale a pena passar algumas horas na frente do computador por isso – não que você deva estar fazendo outra coisas nos últimos meses – haha.
vr6625@hotmail.com
Democracia é uma Fantasia, ela não existe em nenhum recanto desse Universo.
Antes da existência da Democracia, deve existir uma Sociedade com um alto nível de desenvolvimento intelectual e social.
O “Covid19” está mostrando que a humanidade está anos-luz distante dessa condição.
Como exigir de um cidadão que não entende que ele precisa de um mínimo de acessórios e ações de proteção, que ajudarão ao dito cujo proteger-se e aos que o cercam, que ele saiba discernir o que é factível e o que é mentira eleitoreira ?
No Universo não existe Democracia nem Tolerância, exemplos ?
-a “praga” atual não tolera abusos, Mata;
-as Leis da Física não toleram abusos, às vezes a punição é a morte.
Esqueçam, pois, não EXISTE em nenhum lugar do planeta Terra um Regime de Fato Democrático.
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