Ana Miranda é provavelmente a maior escritora brasileira de romances históricos desde que estourou com Boca do inferno, em 1989. Eu sou uma fã relativamente recente, mas li quase todas as obras adultas que ela publicou. Faltava a última, Xica da Silva – a cinderela negra, comprado em uma das edições da Flip. Publicado em 2016 pela Record, Xica é quase tão difícil de definir quanto o trabalho anterior de Miranda, o genial Musa praguejadora, sobre o poeta Gregório de Matos (escrevi sobre ele para o Suplemento Pernambuco).
Biografia romanceada, romance biográfico, romance histórico, ou simplesmente história e biografia – difícil rotular. Assim como em Musa praguejadora, também em Xica da Silva a escritora combina ficção e pesquisa, marcando a passagem entre um e outro com o texto em itálico para os trechos romanceados. Porém, em Xica a divisão é menos clara: há muito de especulação nos trechos históricos, e muito de história (claro) na ficção. Desta forma, Ana constrói um panorama que é também afetivo a respeito de Francisca, mulher negra, nascida escravizada, transformada numa verdadeira lenda brasileira – uma lenda multifacetada e mutante, reconhecida pela sagacidade e resiliência, mas quase sempre erotizada de maneira bastante pejorativa.
A construção do mito Xica da Silva começa quando ela é comprada pelo contratador João Fernandes de Oliveira, jovem de origem portuguesa nascido em Mariana, herdeiro do contrato para exploração de diamantes nas minas gerais. Em apenas dois meses de convivência, Xica foi alforriada por João Fernandes, que então assume publicamente um relacionamento amoroso com a ex-escrava. Passam a viver praticamente como marido e mulher, embora impossibilitados de casar oficialmente, para não prejudicar a imagem do contratador ante a Coroa Portuguesa, de cujos favores dependia para manter a exploração de diamantes.
A obra de Ana Miranda traz uma excelente contextualização do que era o Brasil das minas gerais no século 18, um barril de pólvora com uma população majoritariamente negra e escravizada, permanentemente insatisfeita com a regulação da Coroa Portuguesa e bastante permissiva nos costumes. Embora fiscalizadas e punidas duramente pela igreja, as relações extraconjugais entre homens brancos e mulheres negras e mulatas, escravas ou alforriadas, eram absolutamente correntes. Para elas, muitas vezes uma forma de ganhar a liberdade, quando não para si, para seus filhos mestiços.
A diferença no caso de Xica da Silva começa com o poder econômico do homem que a escolheu: podre de rico, o contratador enche a amante de luxos extravagantes, na forma de vestidos, joias, imóveis e escravos. A presença dela na sociedade da Vila do Tijuco (hoje Diamantina) é, dessa forma, imposta econômica e politicamente, pois sua ascendência sobre João Fernandes atraía os favores e bajulações dos que tinham questões a resolver com o contratador.
Ana Miranda acrescenta à pesquisa histórica uma excelente revisão das obras literárias publicadas anteriormente sobre Xica da Silva e que tiveram papel fundamental para sua mitificação. Nestes trabalhos, a personalidade da ex-escrava é construída segundo a duplo estereótipo de mulher e negra – lasciva, indolente, interesseira, esbanjadora do dinheiro alheio, praticamente uma feiticeira que aprisiona o pobre contratador João Fernandes com seus dotes sexuais. A escritora recorre também a trabalhos históricos anteriores sobre Xica – em especial o de Júnia Ferreira Furtado, publicado pela Companhia das Letras – para matizar essa visão com base no que efetivamente se sabe sobre o casal.

É certo, por exemplo, que a relação entre os dois foi bastante duradoura. Eles tiveram treze filhos, criados junto com o primogênito de Xica, rebento de seu proprietário anterior. Não há nenhuma informação de que um dos dois tenha sido infiel. João Fernandes cuidou para que Xica tivesse condições de se sustentar sozinha, dando a ela imóveis e escravos (ela chegou a ter mais de 100) e possibilitando que todos os filhos estudassem no que havia de melhor na época – um convento local para as meninas, Portugal para os rapazes. Ou seja, para todos os efeitos, o roteiro de um casal que se respeitava e que ficou junto por afeto.
Ao que tudo indica, o perdulário dos dois era João Fernandes. Ana Miranda adota a tese de que Xica basicamente dançava conforme o baile e embora fosse, sim, vaidosa, e enxergasse a necessidade de ostentar riqueza para se manter respeitada, as extravagâncias tinham como motivação agradar o contratador, quando não eram ideia dele próprio – como no lendário episódio em que manda construir um tanque e um pequeno navio para 10 tripulantes para mostrar a Xica como veio de Portugal para o Brasil.
O fim dessa história é bem triste. Com a Coroa Portuguesa vivendo um momento atribulado, sob o risco de ter o contrato de exploração de diamantes encerrado, e com a partilha da herança deixada pelo pai para resolver, João Fernandes decide voltar a Portugal. Xica não pode acompanhá-lo, sob risco de sua presença atrapalhar os negócios, e porque na metrópole, ela sabe, não conseguiria levar a vida de respeito que tinha no Tijuco. Ambos sabiam que aquela viagem provavelmente não teria volta. De fato, o contratador morre doente nove anos depois da partida.
Rever a história de Xica da Silva com o olhar do século 21 – o olhar de mulheres pesquisadoras e escritoras, debitárias dos avanços feministas – é libertá-la do mito construído por homens brancos, que só enxergaram na personagem um corpo disponível para ao sexo. A história é a mesma, os fatos do passado não mudam, mas muda completamente a forma como olhamos para eles e como nos posicionamos. É óbvio que o sexo é importante numa relação amorosa que, além de tudo, tem início numa situação de dominação e posse. Mas reduzir um relacionamento tão duradouro ao que acontecia na cama é, além de tudo, irreal.
Em meados dos anos 1990, uma jovem atriz de apenas 17 anos causou furor no set da novela Xica da Silva, da TV Manchete, ao se rebelar contra o diretor Walter Avancini e se negar a gravar uma cena de sexo anal. Era Taís Araujo, para quem Xica deveria ser lembrada também pela inteligência, não apenas pela sensualidade. A carreira de Taís poderia ter sido boicotada naquele momento (não faltaram tentativas), mas a consciência e a coragem, amparadas talvez pela percepção de uma era de mutações, mostraram em pouco tempo que ela estava certa.
A história dessa Cinderela Negra é repleta de drama, fantasia, sonho, e carrega qualidades estranhas e imponderáveis. Seja qual for a interpretação dada a Xica da Silva, ela encarna a mulher que se libertou da pobreza, do desprezo racial e social, da opressão política e da senzala, o que a torna inesquecível para aqueles que amargam prisões ou medos, para os esperançosos e sonhadores. Ela sempre será alguém que sofreu, lutou e conquistou a liberdade.
Xica da Silva, o livro, não tem a paixão da escritora pela personagem que transparece nas páginas de Musa praguejadora, dedicado a Gregório de Matos, mas é um belo livro para se compreender uma época sui generis na história brasileira.
Amigos, passando apenas para dizer que corrigi este final de semana um equívoco imperdoável e finalmente assinei o LQ.
Fui imediatamente recompensado por esse belo texto de Renata.
O único problema será o crescimento exponencial da prateleira “quero ler” no Goodreads.
Obrigado! E parabéns pelo trabalho incrível de vocês.
Abs, bjs
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Mas que honra!! 😘
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PS: roubei para os meus posts a ótima ideia de ilustrar os posts com fotos dos livros. Bem melhor que uma reprodução besta da capa!! 🙂
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Aah, boa! Tô tentando melhorar. A câmera do celular é muito ruim, sempre fico insatisfeita. Mas essa eu fiz com uma Nikon, acho que vou continuar nela, apesar de dar preguiça. 😀
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Adoro a Ana Miranda. Muito obrigado por compartilhar. Adicionarei na wishlist da pandemia. haha
Abraços,
Gustavo Woltmann
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Como sempre, quando não sei o que ler, corro aqui. Xica da Silva não estava nem perto de um livro que eu queria ler, nem sei o porquê. Amo as biografias e os romances. Resolvi encarar e fiquei apaixonada. Pela Xica e pelo jeito que a Ana Miranda contou essa história.
Bela dica, Renata.
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