Se sua única referência sobre Mowgli são os filmes da Disney ou a versão mais recente produzida pelo Netflix, você tem apenas uma pálida ideia do que é o personagem imaginado por Rudyard Kipling em seus Livros da Selva, publicados em 1894 e 1895.
No desenho animado lançado em 1967, a Disney limpa toda a narrativa de qualquer conteúdo controverso, como em geral acontece com as adaptações do estúdio. Resta uma visão romantizada do que seria um menino criado por lobos no meio de uma selva indiana e, como sempre, um entendimento maniqueísta sobre o-bem-e-o-mal. Não vi o live action lançado em 2016, mas a julgar pelo trailer e por esta crítica do Adoro Cinema, a pegada não muda muito.
Já o live action realizado pelo Netflix em 2018, embora divulgado como “muito mais sombrio”, fica no meio do caminho: dirigido por Andy Serkis, o filme de fato é mais violento e, se encontra em Roand Chand um excelente ator mirim, não escapa do mesmo maniqueísmo em que a Disney incorre ao dividir o mundo animal (e humano) entre inteiramente bons e inteiramente maus.
Mowgli, é claro, tem seu lugar reservado entre os cidadãos de bem. E não há nada mais distante da visão de Rudyard Kipling sobre o personagem e sobre a selva que o cerca.
O Mowgli de Kipling
A Netflix até tentou, colocando Entre dois mundos como subtítulo de sua produção – e, de fato, essa é a essência de Mowgli: um menino criado na selva em meio a uma alcateia e que, enquanto cresce, começa a perceber que não é exatamente um animal, mas não consegue se ver inteiramente como homem. A questão é não apenas existencial, mas também pragmática: Mowgli percebe aos poucos que sua inteligência o faz diferente dos animais e começa a usar esse fato a seu favor, clamando o direito à liderança. Não demora a tratar os animais como inferiores, mesmo aqueles a quem deve a vida.
O menino-lobo é humano em sua sede de poder e duvida de sua humanidade por não compreender as convenções socioculturais dos homens e mulheres com quem trava contatos breves. Sobre estes exerce o poder de quem tem um domínio incomum sobre os segredos da selva. Em um dado momento, os animais não conseguem mais olhar Mowgli nos olhos, e começam a temê-lo. Já aos homens, ele parece um deus da selva.
Aí estão os dois mundo entre os quais o personagem transita, e é um grande mérito de Kipling fazer com que os limites sejam borrados em uma obra infanto-juvenil. Um exemplo vai no trecho a seguir, que inicia o conto Cão vermelho:
Foi depois que a selva avançou sobre a aldeia que a parte mais agradável da vida de Mowgli começou. Ele possuía a consciência tranquila de quem acertara suas contas; e todos na selva eram seus amigos e tinham apenas um pouco de medo do menino.
Amigos que têm medo? Isso poderia ser uma definição de alguém curtindo o poder.
Os livros da selva
Os livros da selva são compostos por oito contos interligados entre si que seguem uma linha mais ou menos cronológica da vida de Mowgli, desde seu rapto pelo tigre Shere Khan, ainda bebê, até sua decisão de deixar a selva, já adulto. A edição que eu li foi a publicada em 2021 pela Zahar, em capa dura, reunindo todos os contos e mais um apêndice com Dentro da rukh, o primeiro texto escrito por Kipling com o personagem, bem diferente dos oito incluídos nos Livros.
Ler o conjunto é uma ótima forma de imaginar o percurso criativo do autor. Dentro da rukh apresenta um Mowgli já adulto, vivendo entre a selva e as aldeias, já capaz de conversar na língua dos homens. O texto está ambientado numa reserva de floresta criada para suprir a demanda crescente por madeira (a rukh) e explora como pano de fundo as questões políticas e burocráticas do governo indiano e sua relação com colonizadores ingleses. A narrativa toma o ponto de vista do administrador inglês Gisborne, responsável pela rukh por onde Mowgli transita, e tem como foco a relação entre os dois.
Nenhum animal fala neste conto, diferente do antropomorfismo que consagrou as oito histórias d’Os livros da selva. Como dizem Alexandre Barbosa de Souza e Rodrigo Lacerda na apresentação, “a característica mais marcante deste livro é a opção pela antropomorfização dos animais, dando a eles não apenas voz e psicologia, mas conferindo-lhes, no sentido mais amplo do termo, cultura“. De fato, todo o comportamento dos animais – que eles tentam ensinar a Mowgli – está amparado na Lei da Selva, que poderia ser descrita como um acordo tácito, de forte carga ética, regulador do que é legítimo ou não fazer para garantir a sobrevivência.
A Lei da Selva, que nunca ordena nada sem motivo, proíbe os bichos de comerem o homem, a não ser que ele esteja matando só para mostrar a seus filhos como se mata, tendo por isso de caçar longe do território de seu bando ou tribo. O verdadeiro motivo de ser assim é que matar humanos significa, cedo ou tarde, a chegada de homens brancos armados e montados em elefantes, e centenas de homens marrons com gongos, rojões e tochas. E aí, todos na selva padecem.
Fora questões desta natureza, todos os animais matam para comer sem qualquer pudor adicional, e sem que isso seja considerado errado pela Lei da Selva (salvo no tempo de seca, quando é proibido caçar à beira do rio). Quando precisa se proteger de um ataque de Shere Khan, Mowgli não só o abate como passa as horas seguintes esfolando o tigre para tirar sua pele, que passa a carregar consigo – uma trecho de rara violência em um livro teoricamente escrito para crianças.
Mowgli – Os livros da selva tem aquela bela característica das obras que não tentam tratar o público infantil com imbecilidade. É também um excelente livro de aventuras, um ótimo texto para pensar o que é ser humano e para discutir colonização e alteridade. Que uma obra escrita no final do século XIX ainda não tenha encontrado uma adaptação à altura no século XXI diz muito sobre nossos tempos.
Texto excelente, parabéns! Me deu muita vontade de ler a obra original
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Obrigada pela leitura!
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