A coluna de Mario Sergio Conti na edição de 19 de setembro de 2020 da Folha de S.Paulo foi a isca para eu ir atrás de Viagem ao redor do meu quarto, pequeno volume de anotações pessoais de Xavier de Maistre, lançado pela Editora 34, com ótima tradução de Veresa Moraes. Trata-se de uma história sob medida para ser lida durante a pandemia da Covid-19, em que a maioria das pessoas, especialmente as que acreditam na ciência e têm a possibilidade de permanecer em casa estão confinadas. Afinal, trata-se de um diário dos 42 dias em que o autor foi obrigado a ficar preso em seu quarto, não por motivos médicos, mas como castigo por ter se envolvido em um perrengue carnavalesco em torno do cotejo a uma dama, que acabou em duelo e ferimentos. Outra atração irresistível dessa edição é o sucinto posfácio de Enrique Vila-Matas, escritor catalão, que sozinho já vale a leitura.
E então, confinado em minha casa, me aventurei na leitura das breves páginas do diário do jovem de Maistre, não sem antes ler um pouco sobre o autor, que viveu entre 1763 e 1852 na região de Turim, período em que havia forte presença francófila, o que explica a escrita original em francês.
Uma vez confinado em seu confortável quarto, na fortaleza de Turim, o jovem que se tornaria tenente e conde é servido por um mordomo, tem ao seu redor itens de conforto como cama ampla, lençóis limpos e de qualidade, alimentação farta, material para pintar e escrever e, pela frente, quarenta e dois dias em que teoricamente não poderá deixar o quarto para cumprir a pena que lhe foi imputada.
Começa então o relato em breves capítulos marcado por uma prosa sarcástica, observações ferinas sobre os costumes da nobreza a que de Maistre pertence, segredos de alcova, dele, e de algumas damas da corte, e os podres da vida política da qual ele é parte integrante. Tudo construído como se fora um relato de viagem. A cada dia, ele toma um rumo dentro do quarto, relatando às vezes em pormenores os detalhes da habitação, como se estivesse saindo para uma longa aventura pelos campos e cidades.
A escrita é leve e, ao mesmo tempo, repleta de referências eruditas. Artes plásticas, estética, filosofia, política, economia, costumes. Nada escapa ao humor ácido do jovem confinado, que vai recheando suas “viagens” de fantasias, deixando muitas dúvidas na cabeça do leitor. Afinal, está confinado mesmo? E essa história, é verdadeira ou pura imaginação?
Viagem ao redor do meu quarto é uma leitura ao mesmo tempo ligeira e que exige atenção para as elucubrações do jovem duelista, que vai colocando a cada dia novos elementos de referências a autores e ideias que moveram a passagem dos séculos XVIII para XIX, momento de grande turbulências, transformações sociais, políticas e econômicas, revoluções como a francesa, início dos movimentos para criação de estados nacionais, muitos dos quais, como Itália e Alemanha, que só se consolidariam décadas depois.
O pequeno livro de Xavier de Maistre não é um dos primores literários da história da humanidade, mas trouxe elementos, especialmente aqueles ligados à prosa carregada de humor e crítica social e de costumes, que deixaram rastros na obra de Nietzche e outros autores. Em nossas plagas ele é citado por Machado em Memórias póstumas de Brás Cubas, que fala da “forma livre de um Sterne ou um Xavier de Maistre”. E, de modo bastante explícito grafa palavras em meio a uma infinidade de reticências, como nas fotos abaixo de ambos os livros, revelando sua fonte de inspiração.
Como Vila-Matas aponta no posfácio, Xavier de Maistre não foi um escritor prolífico. Esta obra, em suas palavras, é de “um autor, enfim, que tanto mais se parece a seu livro quanto nunca pensou em ser autor”, enquadrando-o no que o autor catalão chama de um dos mestres da literatura do não, em livro que comentei neste post. E você pode perguntar: em que medida Xavier se parece com seu livro? Seu diário revela o que ele era na sociedade de Turim. Um dândi, destinado a ser nobre, festeiro, rico, que seria perfeitamente um playboy em nossos tempos, desfilando carrões e iates, cercado de belas mulheres em uma vida de eterna festa, mas com algumas preocupações filosóficas para mostrar aos parças que não é de todo um fútil. Leitura saborosa, para devorar de uma sentada só. Vale a pena.