A literatura do não

BartlebyImagine um leitor obcecado por autores que escreveram apenas uma obra. Esse mesmo leitor se interessa por escritores que de repente interromperam sua carreira e nunca mais escreveram. Mais do que isso. Imagine que esse leitor pesquisa incansavelmente autores que nunca escreveram. Opa! Autores que nunca escreveram são autores? Para esse leitor, são. Desde que tenham deixado por escrito ou declarado publicamente que não quiseram escrever. Talvez por não ver sentido na literatura. Esse leitor talvez não exista. Mas ele foi inventado pelo catalão Enrique Vila-Matas, este sim um escritor obcecado pela literatura do não. Ao seu melhor estilo, o que fez Vila-Matas? Criou um personagem para cuidar de seus interesses literários.

Trata-se de um funcionário medíocre em um escritório ordinário, que pede licença médica a fim de tratar não de sua saúde, mas de sua paranoia pela escrita do não. “Nóia” que será relatada em anotações feitas em um diário.

Renata já disse aqui que Vila-Matas é um pândego. E ele é, em grau elevadíssimo de sacanagem com o leitor.  Ele faz da literatura um ambiente para exercitar seu refinado senso de ironia. O sarcasmo abundante transborda das páginas de seus livros. E o pândego vai além. Aproveita para falar de seu assunto predileto: literatura.

Se você chegou a este ponto da resenha, deve estar se perguntando: afinal, de que livro esse cara tá falando?

Bom. Antes de dizer o nome, preciso contar que ele foi comprado em uma noite chuvosa, no bairro de Gracía, em Barcelona, sob efeito de altas doses de cava, brandy e cerveja. Compramos, porque era Vila-Matas, que está em alta conta nas predileções dos autores deste blog. Compramos, junto com outros livros, voltamos ao Brasil, colocamos na estante. E esquecemos. Até que, um ano depois, ele foi retirado da prateleira, com a seguinte pergunta: onde diabos compramos esse livro? Portanto, fica a dica: se beber, não entre em uma livraria munido de cartão de crédito. Ainda mais se essa livraria cobrar em euros.

Pronto. Vamos falar de Bartleby y compañia, cuja edição, em espanhol, da Seix Barral, lançada em 2015, foi comemorativa dos 15 anos do lançamento dessa obra que é considerada peça fundamental na carreira de Enrique Vila-Matas. Demos sorte, porque a edição vem com um posfácio, escrito pelo próprio autor, com La pregunta de Florencia, que explica um pouco dessa obsessão pela literatura do não e pelo silêncio dos autores.

Ao ler Bartleby y compañia descobrimos que o narrador começou a se interessar pelas obras do não e por carreiras literárias interrompidas a partir de um conto de Herman Melville. Conto que gira em torno de Bartleby, um escrevente medíocre de um escritório obscuro, quase um duplo de nosso narrador. Bartleby “jamás ha sido visto leyendo, ni siquiera um periódico”. É um tipo “que nunca bebe cerveza, ni café como los demás; que jamás ha ido a ninguna parte, pues vive en la oficina…”.

Não conheço, ainda, este conto de Melville. Mas é claro que estamos atrás do texto. O importante é que Bartleby, o conto, é ponto de partida para que o narrador de Vila-Matas faça uma viagem incrível ao mundo da literatura, em busca dos “bartlebys” da história da escrita.

O leitor passa um bom par de capítulos desse diário literário achando que é tudo invenção. Até que começa a pesquisar as referências dos muitos escritores da literatura do não. A leitura passa a ser acompanhada por inúmeras consultas ao pai Google (verifique seu pacote de dados!!!). E as biografias de autores como Kafka, Pessoa, Melville (também ele) e muitos outros, confirmam frases sobre o desencanto com a literatura, períodos longos sem publicação de qualquer texto, carreiras interrompidas.

Além de tudo, Vila-Matas nos traz histórias saborosas, como a de um conto em que o personagem acusa Saramago de roubar suas ideias e publicar antes dele obras como História do cerco de Lisboa ou Jangada de pedra.

Bartebly y compañia, ao modo de Enrique Vila-Matas, é um livro de referência para leitores apaixonados, como também o é Breve historia da literatura portátil. Impossível, a cada capítulo, não ter vontade de sair à cata dos autores e livros citados e colocar em risco as finanças do mês.

Além de tudo, é um livro sobre o que Roberto Bolaño define como “o abismo e a vertigem não só da literatura como da vida” diante da incapacidade de criar. Vila-Matas, mais uma vez, faz uma homenagem a essa arte tão fundamental e tão maltratada.

Para quem quer ler em português, há uma edição da Cosac Naify. E para quem quer mais Vila-Matas no Lombada Quadrada, seguem as resenhas de Aire de Dilan, História abreviada da literatura portátilExploradores do abismo e Paris não tem fim, que comprovam nossa obsessão pelo autor.

Gostou? Compre aqui:
Bartleby E Companhia

7 comentários sobre “A literatura do não

    1. Marcelo, Vila-Matas vale muito a pena. Se quiser começar a ler sua obra, sugiro Paris não tem fim, publicado no Brasil pela Cosac Naify.
      Leia e venha aqui nos contar.

      Curtir

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