Júlio Verne é um daqueles autores de quem é possível conhecer praticamente todas as obras sem ter lido uma linha original. Inspirador de outros livros, quadrinhos, filmes, desenhos animados e contações de histórias, quase tudo dele foi adaptado para outros formatos. Seus personagens, por sua vez, ganharam vida própria sob a pena, o pincel ou a câmera de vários autores. O mesmo acontece com a comunidade de admiradores que procura perpetuar suas aventuras por meio de fanfictions.
Com tudo isso, ainda faz sentido ler os livros do próprio Júlio Verne? Ô, se vale.
Já tinha ficado encantada com sua escrita em Volta ao mundo em 80 dias, que li anos atrás em um pocket book da Penguin. Mês passado, pra testar o resultado das aulinhas do Senac, encarei Vinte mil léguas submarinas em francês. Tive duas surpresas: (1) consegui ler de boas com algumas consultas ao dicionário e (2) caramba, que livro incrível.
Obviamente, eu não era alheia a todos os elogios feitos normalmente às criações de Júlio Verne – o mais conhecido é sua capacidade quase premonitória de inventar traquitanas tecnológicas que acabaram sendo efetivamente construídas no século seguinte.
O submarino é uma delas: projetado pelo misterioso Capitão Nemo, o Nautilus navegava incógnito sob os mares do mundo, subindo à superfície apenas para renovar seu estoque de oxigênio. Movido exclusivamente à energia elétrica – uma novidade de então – ele era dotado de toda a tecnologia necessária ao conforto da tripulação, incluindo a conservação de alimentos. Emergia e submergia por meio de um sistema de tanques internos, que tornavam Nautilus mais pesado ou mais leve com a própria água do mar, conforme a necessidade.
[É interessante notar que Verne não chamava o Nautilus de submarino, e sim de navio – a palavra que depois denominaria a coisa em si foi originalmente aplicada como adjetivo, e não como substantivo].
Sua imaginação, aliada à acuracidade nas descrições da natureza e de fenômenos científicos, faz com que Verne seja cultuado como o criador do gênero sci-fi. O ritmo narrativo que imprime a suas histórias é também bastante reconhecido. Mas pouco se fala sobre outro aspecto bem interessante do autor francês, e que aparece de maneira evidente em Vinte mil léguas: a construção de personagens complexos e atemporais, capazes de manter suas histórias absolutamente atuais, não importa o quanto a tecnologia projetada por Verne já tenha ficado no passado (quem ainda se impressiona com submarinos, afinal?).
Quase nada é revelado sobre o Capitão Nemo ao longo do livro. Sabemos que ele fala uma língua pouco comum com sua tripulação; que é fluente em diversos outros idiomas ocidentais; que é um pesquisador aplicado em várias matérias ligadas à ciência e à natureza; que é admirador das artes e que toca órgão; que se recusa a pisar em qualquer continente por onde já andaram outros homens. No afã de cortar todos os laços com a terra firme, o capitão não revela sua origem e sequer seu nome real (Nemo quer dizer “ninguém” em latim).
[Aviso de spoiler] Lá pelas tantas, sabemos também que Nemo perdeu sua família e que percorre o mundo numa aparente cruzada contra o imperialismo. Isso inclui o apoio a revoluções de povos oprimidos ao redor do mundo, além do ataque a outros navios, usando como arma um esporão de aço na proa do Nautilus. Mas cada embate provoca também reações ambíguas, e o capitão se desespera em aparente remorso pelas mortes provocadas. Essa ambiguidade – como todo o caráter do Capitão Nemo – não deixa de ser ingênua, mas estamos falando de um livro que é, essencialmente, de aventura. [Fim do spoiler]
Nemo é refinado, inteligente, perturbado e bonitão. De quebra, tem um passado misterioso e convicções fortes – a combinação perfeita para o anti-herói arquetípico. Se eu tivesse lido Vinte mil léguas submarinas com 14 anos, Wolverine teria enfrentado um sério concorrente ao posto de meu crush literário. Ok, então agora confessando, Nemo é o meu crush literário balzaquiano – meu e de uma penca de pessoas, a julgar pela quantidade de fanfictions produzidas sobre o personagem na web.
Parte do seu passado é revelado em outro livro de Júlio Verne, A ilha misteriosa, responsável por sedimentar a imagem final do personagem junto ao público – por exemplo, na representação que dele faz Alan Moore na série de histórias em quadrinho A Liga Extraordinária. Para quem não conhece, a Liga é como um grupo de super-heróis contemporâneos, só que seus integrantes são sacados de clássicos da literatura de terror e ficção científica do século 19. Além de Nemo, o grupo inclui Mina (de Dracula), o Homem Invisível, Allain Quartermain, Dorian Gray e por aí vai.
Moore, que não é um quadrinista qualquer, teve uma excelente sacada. Todos são personagens imortalizados pelo carinho ou curiosidade de gerações leitores ao longo de mais de 150 anos. Nemo, como já sabemos, ainda tem apelo depois de todo esse tempo. Será que Wolverine terá o mesmo destino?
PS: Toda a obra de Júlio Verne já está em domínio público, então tem edições em Português por várias editoras, ou mesmo pra baixar em PDF de graça. Se optar por comprar, veja essa lista de opções da Amazon.
PPS: A foto foi feita por mim durante uma visita ao Aquário de São Paulo.
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