Frank e Ci são duas crianças brincando nos campos de Lotus, na Georgia, Estados Unidos. Por entre as cercas de uma propriedade, admiram os belíssimos cavalos que, sobre as patas traseiras, parecem estar de pé. A movimentação de homens carregando outro – aparentemente morto – os tira de seu devaneio. Frank e Ci testemunham uma pessoa, negra como eles, sendo enterrada em uma cova rasa, no meio do pasto. Então fogem, rastejando suas barrigas sob a cerca. Deste dia, Frank se lembraria apenas dos cavalos de pé.
Descrito nas primeiras duas páginas do livro, esse episódio resume perfeitamente o tom de Voltar para Casa, romance curto da escritora americana Toni Morrison, a primeira negra a receber um Nobel de Literatura (1993). Escrito em 2012 e publicado agora no Brasil pela Companhia das Letras, esta é mais uma obra em que Morrison joga luz sobre a vivência de personagens negros para escrever quase uma história paralela dos Estados Unidos, numa narrativa do sofrimento que ganha corpo desde Amada, de 1987, já resenhado aqui.
Se em Amada a história estava ambientada na época do fim da escravidão nos Estados Unidos, Voltar para casa se passa nos anos 1950 do pós-guerra. A manutenção de negros escravizados já não era legalmente amparada, mas seguia socialmente em vigor, numa América no auge da política segregacionista; uma política que, dentre outras coisas, reservava aos negros os assentos traseiros dos ônibus e os impedia de entrar em certos estabelecimentos.
É nesse contexto que acompanhamos Frank, um soldado que volta da Guerra em choque, tentando chegar em sua cidade natal para cuidar da irmã, Ci. Ele recebe uma carta informando que ela está doente, e perto de morrer. Inicia então uma espécie de Odisseia particular pelo território americano, em que os desafios míticos são substituídos por uma sociedade racista e uma polícia idem, para a quem segue sendo um suspeito apesar da medalha de bravura que ostenta na camisa. Ao contrário de Ulisses, a jornada de Frank é feita de olhos para baixo.
Assim como em Amada, Toni Morrison não deixa de lembrar-nos que o racismo pode se tornar ainda pior quando a ele soma-se a questão de gênero. A jornada de Ci, portanto, é ainda mais difícil. Nascida na rua e em meio a uma fuga, depois de seus pais terem sido expulsos de sua casa pelos vizinhos brancos, Ci parece corporificar o Erro (com E maiúsculo, tudo de mal que acontece no mundo) desde sua primeira respiração. É contra essa construção social que ela se debate, sem a entender muito bem. Eventualmente, Ci aprende da pior forma que seu corpo, feminino e negro, está à disposição para quem dele quiser dispor, sem limites.
Voltar para casa é um livro sobre a desumanização e a luta cotidiana pela humanização da população negra. Como as lembranças de Frank na abertura do livro bem resumem, é sobre querer estar de pé, em um meio que só os enxerga rastejando. Nessa busca pela humanidade, os irmãos descobrem a proteção comunitária e, no caso de Ci, a sororidade. Como qualquer mulher sabe, e as mulheres negras melhor do que todas nós, as relações de gênero reproduzem a lógica da dominação mesmo entre grupos submetidos a esta mesma lógica – se é ruim ser negro, ser uma mulher negra é carregar nos ombros a opressão do mundo.
Toni Morrison trata de tudo isso em um tom que não é nada panfletário. Grande parte dos leitores vai, possivelmente, ler apenas um romance sobre a história americana, sem enxergar o posicionamento político da autora nos detalhes e metáforas. A maior delas, entregue logo na introdução, é também a mais bela: o desejo de se fazer humano, estando de pé.
PS: A foto de destaque foi tirada no quilombo Serrote do Gado Brabo, em São Bento do Una, interior de Pernambuco (2007).
Gostou? Compre aqui:
Voltar Para Casa
Ótima obra. Nessa pequena leitura encontramos todas as características de tudo que Morrison já escreveu num tema mais atualizado. Aliás, esse tema da guerra, o desejar ficar em pé, nada mais é que uma problemática também do homem brasileiro: sobreviver.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Não apenas sobreviver, mas também conquistar a dignidade.
CurtirCurtir