Tem livro que conta uma boa história, tem livro que marca pelo uso criativo da linguagem, tem livro que conquista pela clareza e urgência de seu posicionamento político. Como os melhores romances da literatura mundial, Amada, da escritora americana Toni Morrison, faz as três coisas. Ao mesmo tempo, trata dois dos temas que mais me têm sido caros ultimamente: a questão racial e o lugar da mulher na sociedade. Não por acaso, conheci o livro por meio da campanha #LeiaMulheres.
Li em inglês no Kindle (Beloved, no título original), mas tem edição recente da Companhia das Letras, em capa dura, como parte da Coleção Prêmio Nobel. Sim, Toni Morrison é uma das (apenas) 14 mulheres agraciadas com o maior prêmio literário do mundo desde sua criação, em 1901. O dela veio em 1993, poucos anos após a publicação de Amada nos Estados Unidos. Em 2006, o livro foi considerado pelo The New York Times como o mais importante romance americano dos 25 anos anteriores.
Ambientado em meados do século XIX, o tempo de Amada é o do final da Guerra de Secessão e os últimos anos do regime de escravidão nos Estados Unidos. O lugar é uma comunidade de ex-escravos instalada no limite entre Norte liberal e Sul escravista. A lembrança do cativeiro e liberdade recente – para quase todos, conquistada em fugas espetaculares – são personagens etéreos com igual peso, o que mantém uma tensão constante nas relações sociais não apenas entre negros e brancos, mas entre negros e negros.
É nesse ambiente que acompanhamos de perto a vida de três mulheres (negras) da mesma família, vivendo em uma casa assombrada pelo fantasma de um bebê. De onde vem esse fantasma, é um spoiler que eu não vou fazer – e recomendo até que só leiam o prefácio depois de terminar o livro, porque a própria autora entrega o jogo. Suficiente dizer que a assombração é uma lembrança constante de um ato de violência extrema ocorrido na vida dessas três mulheres. Conviver com o fantasma, no entanto, é parte do cotidiano; por pior que sejam suas manifestações, elas o tratam como se fizesse parte da paisagem.
Essa é uma primeira metáfora poderosa do livro. No prefácio, Toni Morrison se pergunta: “O que ‘lilberdade’ pode possivelmente significar para uma mulher?”. Assim como o fantasma literal do romance, outros, reais, assombram as personagens femininas em seu cotidiano. Mesmo em uma comunidade que tem em comum um passado violento, e que se une para superá-lo, ser mulher é um agravante que limita as possibilidades de sobrevivência e de autonomia.
Essa ambiguidade está sempre presente. A violência sofrida no cativeiro por todos os personagens negros não os eximem de se pensar e se comportar de maneira contraditória (melhor seria dizer de maneira humana?). Machismo, inveja, egoísmo estão tão presentes nas relações intracomunitárias como a solidariedade. Ninguém está isento de julgamento, não importa o quanto tenha sofrido, ou o quanto esse sofrimento o tenha levado a atos extremos.
Numa prosa que reproduz de maneira poética o falar dos personagens, a narrativa fragmentada costura retalhos de passado em meio a colcha que compõe o romance, e é assim que temos conhecimento do que era o cotidiano de um escravo nos Estados Unidos do século XIX. Além da violência física, o que Amada expõe principalmente é a desumanização dos personagens e a redescoberta de sua humanidade a partir da liberdade.
São momentos extremamente poéticos quando os personagens descobrem prazer em coisas tão basilares: que podem acordar e decidir o que fazer com seu dia; que suas mãos lhes pertencem, e a mais ninguém; que seus corações batem; que podem amar sem medo de que esse amor lhes será tirado. De todas as violências do regime escravocrata, a restrição ao amor é a mais marcante no romance de Toni Morrison, algo pouco percebido e discutido aqui da segurança do século XXI.
Assim como aconteceu com Negras Raízes, de Alex Haley, foi impossível ler Amada sem o questionamento: por que não há no Brasil uma literatura que se debruce sobre o período de escravidão do ponto de vista dos negros?
Notícias recentes sobre pesquisas acadêmicas no campo da História dão algumas pistas. O único relato autobiográfico escrito deixado por um negro escravizado no Brasil é o de Mohammed Gardo Baquaqua. Do Brasil ele seguiu ainda cativo para Nova Iorque, de onde conseguiu fugir. Segundo matéria d’O Globo, a luta abolicionista nos Estados Unidos e Inglaterra utilizava as autobiografias como estratégia de sensibilização para a causa, o que resultou num rico registro dessas vozes em língua inglesa, preservadas até hoje.
O de Baquaqua surgiu nesse contexto e nunca havia sido traduzido para o Português, o que está sendo feito agora pelo pesquisador pernambucano Bruno Véras. Em outras palavras, nunca tivemos em nossa literatura o tipo de material que provavelmente Toni Morrison, Alex Haley e outros escritores afroamericanos leram ainda na escola – o relato vivo de quem passou pela escravidão e sobreviveu para deixar sua história pessoal contada em detalhes. Não a Antropologia, não a História, não a Estatística, mas o cotidiano de desumanização, violência e medo que deixou rastros ainda muito visíveis no tecido social.
Por isso, acompanho com muito interesse o trabalho de Bruno Véras com o seu Projeto Baquaqua, cujo desenvolvimento pode ser seguido pelo site e pelo perfil no Facebook. Talvez essa voz de 150 anos atrás tenha vitalidade suficiente para despertar um coro na literatura contemporânea.
PS: A foto que ilustra esse post é da obra Parede de memória, da artista paulista Rosana Paulino, faz parte da exposição Territórios: Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca, em cartaz até 17/4 na Estação Pinacoteca. Aliás, recomendo. 🙂
Este post veio bem no momento em que estou lendo “Texaco ” de Patrick Chamoiseau. Sobre a estoria de vida dos negros pré e pós escravidão na Dominica.
Mas me fez lembrar do dramático “A Cabana do Pai Thomas,”- H.B.Stowe, que li há alguns anos .
Em suma; Parabéns Renata Beltrão!
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Olá, Marcelo, obrigada pela leitura e pelas dicas. A questão racial é um dos temas que mais discutimos aqui no blog, é sempre importante ter novas referências. 🙂
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