Uns anos atrás, voltando de um passeio com Medeia (minha beagle), entrei no elevador de serviço do prédio onde morava, junto com uma senhora negra. Ela estava impecável: cabelo arrumado em tranças reluzentes, maquiagem, roupas sociais, sapato de salto limpo e lustrado. Eu estava de jeans velho, sujo de café, camiseta dessas que se ganha de brinde e acaba virando pano de chão, chinelos, cabelos desgrenhados. Eu dei bom dia, ela respondeu, e em seguida começou a perguntar: “Você conhece alguém aqui no prédio que precise de faxi…”. Ela não terminou. Eu respondi mesmo assim. Não, eu não conhecia ninguém, disse sem graça. Chegou o meu andar, saí do elevador, e a cena ficou na minha cabeça durante muito tempo.
A senhora tinha percebido no meio de sua pergunta que todo aquele desleixo, paradoxalmente, era sinal de que eu não poderia ser empregada doméstica como ela. O fator determinante era a cor da minha pele: e só uma pessoa muito segura de seus privilégios, ainda que inconscientemente, poderia sair à rua como eu tinha saído. O contrário também era paradoxal: muito embora ela estivesse arrumada o suficiente para ser advogada, engenheira ou CEO de uma fintech, a cor de sua pele era um carimbo social.
Quando isso aconteceu, eu já tinha lido e aprendido o suficiente sobre questão racial no Brasil para entender o que tinha acontecido. Mas ainda não fazia muita ligação com a questão de gênero, igualmente importante. Daí, nas últimas semanas a leitura de Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, me ajudou a entender melhor essa equação.
O livro foi publicado aqui pela Boitempo e ganhou outra tiragem ano passado, quando Angela circulou em turnê por três ou quatro capitais brasileiras, falando para plateias imensas. Em São Paulo, ela deu palestra para um público mais restrito em um seminário no Sesc, e depois falou para mais de quinze mil pessoas que lotaram o gramado na área externa do Auditório Ibirapuera. Ter passado por lá me estimulou a finalmente tirar o livro da estante, onde já estava há uns três anos.

O título do livro já é suficientemente claro: Angela trata da intersecção entre feminismo, antirracismo e luta de classes. Ela o faz numa perspectiva histórica, partindo dos primórdios da resistência negra, quando a escravização ainda era uma prática vigente nos Estados Unidos, passando pela alvorada do feminismo e problematizando as duas questões, sempre, a partir da perspectiva econômica. Tanto o racismo quanto o machismo, vai concluindo Angela ao longo de sua análise, são expressões de poder capitalista.
Se gênero, raça e classe estão continuamente em jogo ao longo da história, os movimentos de resistência, até aqui, têm falhado em ver as conexões. O abolicionismo, o feminismo e o sindicalismo, todos deixaram pontas soltas – e a maior vítima disso é mulher negra, seja qual for o ponto de partida.
Enquanto o abolicionismo e a posterior luta por igualdade racial falharam em ver as discriminações e violências específicas de que são vítimas as mulheres negras por causa do gênero (exploração sexual e estupros, por exemplo), o feminismo surge como uma causa eminentemente burguesa que desconsidera problemas graves tanto das mulheres negras quanto das operárias brancas ao colocar como uma de suas pautas, por exemplo, o direito ao trabalho (direito ao trabalho pra quem foi escrava?!? Oi?). Os movimentos de trabalhadores, por outro lado, desconsideraram ao longo da história tanto as questões específicas ligadas a raça quanto as de gênero, em prol “da causa maior” que seria a luta de classes.
As contradições são inúmeras e entre elas há, por exemplo, abolicionistas racistas, que enxergavam a necessidade econômica e moral do fim da escravidão mas que, ainda assim, consideravam pessoas negras inferiores e batalhavam para que seus direitos sociais continuassem restritos ao mínimo. Não viam nenhuma contradição entre o antiescravagismo e a proibição de negros votarem.
Angela Davis faz um relato cronológico de tudo isso, solidamente amparado em referências históricas, de forma que as evoluções ou involuções discursivas ficam bastante claras e sem didatismo exagerado. Evitando a armadilha de que opiniões pouco progressistas seriam apenas retrato do tempo, ela apresenta dezenas de personagens que lançavam vozes dissonantes apontando a necessidade de um combate interseccional. Há homens e mulheres negros e brancos entre as personalidades elogiadas por Davis por suas atitudes e opiniões.
Um exemplo emblemático é o discurso da ex-escrava Sojourner Truth em uma convenção de mulheres em 1851. Atacadas por um grupo de homens pregando a supremacia masculina com base na força física, a mirrada Sojourner subiu ao púlpito para mostrar seus braços musculosos, resultado de uma vida na lavoura. Enquanto pontuava a dureza do trabalho no campo a que as escravas eram submetidas em igualdade com os homens negros, ela bradava: “Não sou eu uma mulher?”. Defendeu ao mesmo tempo a causa das mulheres e a dos negros e, segundo Angela, “ao repetir sua pergunta (…) nada menos do que quatro vezes, ela expunha o viés de classe e o racismo do novo movimento de mulheres”.
Davis nos ajuda a fazer conexões com obras artísticas nascidas do contexto histórico de racismo nos Estados Unidos: ela cita diretamente A cabana do Pai Tomás (Harriet Beecher Stowe) e Negras raízes (Alex Halley), mas indica de onde surgiram as histórias de Amada e Voltar para casa (Toni Morrison), O sol é para todos (Harper Lee), Kindred (Octavia Butler) e da música Strange Fruit (de Abel Meeropol, imortalizada na voz de Billie Holiday). Tentativas desesperadas de fuga, filicídio, vilipêndio dos direitos reprodutivos, estereotipização do homem negro como estuprador e penas de morte sumárias executadas por linchamento são o pano de fundo desses trabalhos, todos baseados em situações e personagens reais.
O livro tem capítulos memoráveis, dos quais destaco:
Estupro, racismo e o mito do estuprador negro, de onde extraio esse trecho:
“Homens da classe trabalhadora, seja qual for sua etnia, podem ser motivados a estuprar pela crença de que sua masculinidade lhes concede o privilégio de dominar as mulheres. Ainda assim, como eles não possuem a autoridade social ou econômica – exceto quando um homem branco estupra uma mulher de minorias étnicas – que garanta imunidade a processos judiciais, o incentivo não é nem de perto tão poderoso quanto o é para os homens da classe capitalista. Quando homens da classe trabalhadora aceitam o convite para o estupro que lhes é estendido pela ideologia da supremacia masculina, eles estão aceitando um suborno, uma compensação ilusória à sua falta de poder.”
Racismo, controle de natalidade e direitos reprodutivos, no qual Davis narra a construção de políticas públicas que dificultavam o direito ao aborto e facilitavam o acesso à esterilização permanente de negras e latinas – inclusive à força -, em vigor até os anos 1970.
O significado de emancipação para as mulheres negras, quando ela começa a discorrer sobre o trabalho doméstico, que continuará sendo um tema transversal em outros capítulos do livro. É nesta seção que ela explica em poucas palavras a situação que narrei no começo deste texto:
“A definição tautológica de pessoas negras como serviçais é, de fato, um dos artifícios essenciais da ideologia racista”.
Por essa lógica, os negros são serviçais porque são inferiores e são inferiores porque são serviçais. É impossível sair desse sistema fechado e, por mais que se tente negar, a história de escravização que está na base do surgimento das nações americanas continua muito presente numa forma de pensar que reproduz a dinâmica da casa grande e da senzala. Faça esse teste você mesmo, amigo branco de classe média: o que é mais natural pra você, lavar o próprio banheiro toda a semana ou pagar a alguém que o faça por você? E quando você pensa nesse alguém, qual o gênero e qual a cor dessa pessoa?
Questione-se: por que é tão natural pensar que outra pessoa deve lidar com a sujeira que você produz dentro da sua casa?
Angela termina seu livro argumentando que as tarefas domésticas são hoje a prisão invisível das mulheres, em especial das negras, e aponta saídas para sua libertação, que passam pela assunção de que cuidar da casa é uma precondição essencial para a atividade produtiva, inclusive no capitalismo. Advoga o surgimento de novas instituições sociais que assumam essa responsabilidade para que as mulheres possam de fato sair para o mercado de trabalho em condições de igualdade.
Será, um dia?
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PS: A imagem em destaque é de uma obra fotografada na mostra Sertão – 36º Panorama da Arte Brasileira, que ficou em cartaz no MAM em 2019.
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