A primeira coisa a dizer sobre Kindred é que não se trata de um livro de ficção científica stricto sensu, embora sua autora, Octavia E. Butler, seja considerada “a grande dama” do gênero. Não há futuro distante, naves espaciais ou tecnologia mirabolante, e a viagem no tempo que é base na trama ocorre de forma totalmente inexplicada.
A segunda coisa a assinalar sobre essa obra é a abordagem corajosa e direta de um tema para o qual o continente americano fecha os olhos alegremente: estamos falando da condição da mulher negra, tão invisível e ao mesmo tempo tão indissociável da história deste lado de cá do mundo. O livro será tema do Leia Mulheres São Paulo deste sábado (24/2), que acontece às 16h na biblioteca do Centro Cultural São Paulo.
Publicado nos anos 1970, Kindred se volta de maneira peculiar ao passado escravagista dos Estados Unidos. Dana, a personagem principal, é uma aspirante a escritora, negra e residente em Los Angeles, casada com um também escritor branco. Enquanto arrumava seu novo apartamento na semana da mudança, Dana sente uma vertigem e é lançada ao passado: quando dá por si, está na Maryland de 1815, em pleno sul dos Estados Unidos escravocratas, onde encontra um garotinho ruivo em apuros.
Após dois ou três episódios semelhantes, Dana deduz que é lançada ao passado sempre que esse garoto está em risco de vida; sua aparição via de regra ajuda a salvá-lo. É quando sua própria vida está ameaçada que a vertigem a leva de volta ao presente. Enquanto as temporadas no século 19 se tornam cada vez mais longas – dias e às vezes meses – ela percebe também que o tempo no presente passa muito pouco, apenas alguns minutos ou horas de cada vez.
Octavia Butler não oferece qualquer explicação para esta ‘falha na Matrix’ – e isso pouco importa. Hitchcock classificaria este recurso como um McGuffin, como chamava a ‘desculpa’ que trazia ação à trama, enquanto ele se dedicava ao que realmente importava: investigar a condição humana e a relação entre as pessoas. Em Kindred, Dana é confrontada com dilemas morais em um tempo radicalmente diferente do seu, mas que é essencial para definir a sua própria existência.
Pois logo ela descobrirá que Rufus, o rapazinho ruivo, é um dos seus antepassados, que começa a linhagem negra da família ao se relacionar com a escrava Alice. Dana descobrirá pessoalmente as bases nas quais essa relação é construída – a ausência total de consentimento, afeto e livre arbítrio. Forçada a fingir ser uma escrava, a personagem também conhece na própria pele a dinâmica de ameaças e castigos que sustentavam a submissão de um enorme contingente de pessoas negras por uma minoria branca.
E se a violência da escravização recaía pesadamente sobre quase todos os negros do sul, as mulheres eram duplamente objetificadas, pois seis corpos serviam tanto ao trabalho quanto ao sexo e à procriação forçada. Não raro, os senhores brancos vendiam os próprios filhos mestiços como escravos. A partir disso, a relação de Dana com Rufus não pode deixar de ser ambígua: ela nutre certo afeto pelo rapaz, mas tem a consciência de que ele se torna seu ancestral pela via da violência – uma violência que ela própria não age para evitar, por interesse próprio.
Quando assiste a Rufus e ao pai perpetrando as maiores barbaridades contra a outra metade de sua linhagem conclui, amarga e infelizmente, que tais atitudes pouco tinham a ver com índoles individuais:
O pai dele não era o monstro que poderia ser com o poder que tinha sobre os escravos. Não era um monstro, de forma alguma. Só um homem comum que às vezes fazia as coisas monstruosas que sua sociedade dizia serem legais e adequadas.
Kindred, no fim, promove o achatamento do tempo ao colocar uma personagem do final do século 20 diante dos suplícios de seus parentes do início do século 19. Ao fazer essa ponte entre duas épocas distantes quase 200 anos entre si, Octavia Butler arruma uma maneira de mostrar algo que deveria ser óbvio, mas nem sempre é: o que somos hoje, como pessoas e como sociedade, é resultado das ações daqueles que nos antecederam.
Nesse sentido, Kindred dialoga com Negras raízes, de Alex Halley (já resenhado aqui) e é uma ferramenta preciosa para o debate sobre a questão de raça nas Américas, debate frequentemente escamoteado por visões individualistas que impedem o reconhecimento dos privilégios até hoje reservados às pessoas brancas: “eu, branco(a), nunca escravizei ninguém, nunca fui racista, logo as cotas raciais são injustas comigo” – quem nunca ouviu variações desse tema?
A escrita de Octavia Butler se encaixa na tradição americana ficcional de clareza e objetividade a serviço da narrativa, com pouco ou nenhum espaço para uma linguagem desafiadora. E é assim que cumpre o seu papel: uma história bem contada, envolvente, engajada e ao mesmo tempo enigmática sobre os efeitos do passado na sociedade contemporânea.
PS: A imagem em destaque é um detalhe da tela Favela, de Di Cavalcanti, fotografada em exposição recente dedicada ao artista na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
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Não um monstro, mas um homem comum que fazia coisas monstruosas. A frase já fale o ingresso.
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