Porque ler ‘O rei da vela’

Oswald de Andrade foi provavelmente o maior agitador cultural que o Brasil já teve e isso não é pouca coisa: ele morreu em 1954 e até hoje não surgiu nenhuma outra pessoa a quem se possa atribuir relevância semelhante, e por tanto tempo. Junto com Mário de Andrade, foi o motor do modernismo brasileiro, movimento estético mais importante da história nacional contemporânea; criou o conceito de antropofagia cultural, ajudou a libertar a poesia brasileira do formalismo e trouxe para a literatura o jeito de falar do povo. Oswald teve seu trabalho reconhecido em vida – no entanto, uma das suas maiores realizações foi uma bomba de efeito retardado, como classificou Décio de Almeida Prado: a peça O rei da vela, que ganhou edição nova da Companhia das Letras no ano passado.

IMG_20171115_162416310Escrita em 1933, ela hibernou durante quase três décadas e foi montada pela primeira vez só em 1967, pelo Teatro Oficina. A ditadura já estava em vigor mas a censura instituída pelo AI-5 ainda não, o que possibilitou a existência do projeto como marco da crítica e do deboche contra a sociedade brasileira no momento mais sombrio de nossa história. Sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, a montagem marcou a reinauguração do Oficina em São Paulo com seu segundo projeto arquitetônico, depois do incêndio que o havia destruído (o terceiro, atual e mais icônico projeto, de Lina Bo Bardi, só seria construído em 1991).

O resultado teve proporções sísmicas mesmo com o estranhamento inicial da crítica e do público – O rei da vela acabaria influenciando, por exemplo, o surgimento do movimento tropicalista. Inspirado nas apresentações, que assistiu diversas vezes, Caetano Veloso escreveu uma música posteriormente incluída na peça e, anos depois, usou o cenário do segundo ato como capa do seu álbum Estrangeiro – um picadeiro de circo cujo pano de fundo ostentava um desenho da baía de Guanabara desenhada por Hélio Eichbauer.

Mas de que trata a peça, afinal? O rei da vela é uma crítica contundente às elites brasileiras, tanto a oligárquica quanto à dos novos ricos. O personagem principal é o agiota Abelardo I, que enriquece emprestando dinheiro a juros impagáveis enquanto articula um casamento de interesse com Heloísa, de uma família tradicional e decadente do Rio de Janeiro. O casamento também será útil a ela, que é lésbica e quer usar a convenção como disfarce pra viver sua liberdade em segredo.

Os nomes não foram uma escolha à toa: eles aludem à história verídica do casal Abelardo e Heloísa da França do século XII, um relacionamento impossível e socialmente inaceitável que virou um ícone universal do amor incondicional. Em O rei da vela, o único amor que os personagens homônimos compartilham é ao dinheiro e ao poder – a escolha de Oswald de Andrade parece ter sido um ato de antropofagia, na contraposição ao ideal do amor romântico como estabelecido pelo cânone europeu.

O primeiro e terceiro atos se passam no escritório de agiotagem Abelardo & Abelardo, onde fica exposto o modus operandi e os pensamentos dos novos ricos. O jargão do capitalismo é o mesmo do exército: ‘executar’ uma dívida é executar também o devedor, literalmente. A ascensão social se dará pela compra de um brasão (o casamento com Heloísa) e a classe artística só tem serventia enquanto mantida em subalternidade, pois precisa de lacaios e posições bem definidas:

“Imagine se vocês que escrevem fossem independentes! Seria o dilúvio! A subversão total. O dinheiro só é útil nas mãos dos que não têm talento. Vocês, escritores, artistas, precisam ser mantidos pela sociedade na mais dura e permanente miséria! Para servirem como bons lacaios, obedientes e prestimosos. É vossa função social!”

Oswald escreveu em 1933, mas poderia ter aludido aos anos 2010, em que assistimos praticamente à criminalização da classe artística e dos mecanismos de incentivo à cultura, assim como a episódios de acovardamento de instituições de mecenato frente ao incômodo causado pela livre expressão. A peça também fala para a contemporaneidade quando Abelardo I alude a uma ‘milícia patriótica’ formada por gente ‘de excelentes famílias’ para mostrar ao ‘populacho’ qual é o seu lugar.

No segundo ato, Abelardo I vai ao Rio de Janeiro encontrar a família de Heloísa, quando então ocorre a dinâmica de amor e ódio entre a elite endinheirada e a elite pobre, porém com sobrenome. Em meio a isso, o surgimento de um personagem americano também introduz o tema clássico (e hoje batido) da capitulação brasileira aos interesses dos Estados Unidos. Para Décio de Almeida Prado – a edição reproduz um texto de sua autoria publicado na estreia da peça, em 1967 – Oswald de Andrade explorou temas marxistas antes mesmo das vanguardas europeias.

A edição da Companhia das Letras traz também ótimos posfácios do ator Renato Borghi, responsável por convencer a trupe do Oficina a montar O rei da vela, e do próprio José Celso Martinez Correa. Borghi relembra o contexto que levou à montagem da peça 1967 e revela algumas histórias de seus bastidores – inclusive o fato de que o grupo acabou sucumbindo à burguesia que ele mesmo criticava ao se ver gostando de frequentar as festas da sociedade carioca como atrações de estimação (voltem um pouco e vejam de novo o trecho que copiei três parágrafos acima).

Já José Celso analisa as opções estéticas e simbólicas que fizeram da peça um marco do teatro e da cultura brasileiros. É ele que lembra: no fim das contas, o agiota Abelardo I move mundos e fundos não para dominar o mundo, mas para manter seus pequenos e mesquinhos privilégios. A edição se encerra com uma cronologia de Oswald de Andrade que ajuda a entender a escalada de sua importância para a cultura brasileira.

O texto em si é algo datado – seria impossível admitir o contrário – mas todo o tsunami que ele gerou desde que foi montado pela primeira vez faz com que sua leitura seja essencial para quem se interessa de verdade pela cultura brasileira do século XX.

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PS: a imagem em destaque é da obra Fase azul (numbers) de Jac Leirner, fotografada no Instituto Inhotim.

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