A aparição de Graciliano Ramos para o mundo da literatura confirma a expressão da “fama que lhe precede”. Ainda prefeito em Palmeira dos Índios, Alagoas, Graça escreveu uma série de relatórios administrativos enviados a órgãos do Estado que causaram espécie. Não pelo conteúdo, mas pelo estilo. O jovem prefeito acabou renunciando ao cargo, decepcionado com as resistências dos oligarcas à sua gestão, mas seus escritos burocráticos nada convencionais começaram a circular nos meios literários cariocas. A ponto de fazer com que o ainda jovem mas já consagrado Jorge Amado entrasse em um navio de cabotagem para uma longa viagem até Maceió em busca desse novo talento. Debaixo do braço, Amado levava o manuscrito de um romance ainda inédito, que a muito custo Graciliano havia entregue a amigos. Este romance era Caetés, publicado em 1933, marcando a estreia de um escritor, cuja fama, enfim, já o precedia. E o começo da carreira de um dos mais brilhantes autores da língua portuguesa.
Compramos a edição comemorativa aos 80 anos do lançamento de Caetés na orgia da Festa Literária de Paraty, a Flip, de 2013, que homenageou o alagoano. O livro ficou na biblioteca por todos esses anos. Nesse ínterim, reli Vidas secas e voltei a chorar com a morte de Baleia. Li pela primeira vez São Bernardo e Infância. Finalmente, em outubro passado deixei de procrastinar a leitura do romance que tanto me chamava, com sua lombada grossa e apelativa.
Pra começar, a edição comemorativa da Record é muito boa. Capa dura, com fortuna crítica que tem Jorge Amado e outros textos da época do lançamento, incluindo artigos de Antonio Cândido e um extenso e bem cuidado posfácio de Erwin Torralbo, um dos estudiosos mais renomados da obra de Graciliano e co-organizador dessa edição com Elizabeth Ramos. Todos os textos, a seu modo, destacam as qualidades da literatura de Graça já presentes em seu livro de estreia. Os sinais do que a maturidade ainda traria em obras primas como a já citada Vidas secas e Angústia, que será minha próxima incursão na obra de Ramos. Alguns enxergam forte influência do estilo de Eça de Queiroz, outros refutam, reconhecendo que o mestre das Alagoas ecoa algo de Eça, mas já desponta, com seu jeito seco, irônico e conciso com estilo próprio e traços de uma narrativa intimista e reflexiva que marcariam sua obra.
A trama se passa em Palmeira dos Índios, a cidade que foi governada por Graciliano, no começo do século XX. João Valério, o anti-herói dessa história, é o guarda-livros de um dos principais estabelecimentos comerciais da vila: o armazém de Adrião, próspero comerciante, de formas avantajadas, casado com a bela Luísa. Valério descende de uma família que tem passado, mas nenhum futuro. Sem herança, restam-lhe a boa educação e os conhecimentos de finanças que não lhe darão o título de doutor e nem melhores aspirações econômicas ou políticas. Contenta-se com o posto de contador e uma certa posição de prestígio que lhe permite frequentar os salões, em especial os saraus na casa do patrão, onde vai não apenas para desfrutar as partidas de xadrez e os cálices de conhaque, mas também para admirar secretamente dona Luísa, sua musa proibida.
Valério cultiva secretamente veleidades literárias. Escreve e reescreve as cenas de um romance que, crê, será um épico da literatura brasileira. Trata-se de Caetés, a epopeia do embate entre os índios dessa tribo e os portugueses, em torno do conhecido episódio de antropofagia do bispo Sardinha. Mas a escrita patina, por pura falta de talento do moço.
A modorra da pequena cidade, as intrigas políticas, as fofocas de alcova, os embates filosófico-literários e políticos entre as personalidades locais, ou seja, o padre, o juiz, o advogado, os comerciantes e os políticos, são retratados com o olhar ao mesmo tempo distante e um tanto cínico de Valério, enquanto este sonha com o triunfo de seu romance e uma vida na capital do país, à beira mar, com a doce Luísa, quem sabe precocemente enviuvada, segundo os sonhos mais delirantes do rapaz, que também se entrega a copos e copos de conhaque e um quase permanente estado de embriaguez. O gosto de vários dos personagens pelo álcool é marcante e rende uma das frases mais sensacionais do livro, uma versão graciliana de “se beber não digite”, que é:
“Não seria difícil travar na igreja um namoro com ela, na missa das sete, e mandar-lhe, por intermédio de Casimira umas cartas cheias de inflamações alambicadas, versos de Olavo Bilac e frases estrangeiras, dessas que vêm nas folhas cor-de-rosa do pequeno Larousse”
E assim segue a narrativa de Caetés. Graciliano vai compondo um quadro social marcado pela hipocrisia, pela falta de mobilidade social, pelo triunfo dos espertos, simbolizado na figura de um advogado arrivista, que vai conquistando poder político e econômico até conseguir importante cargo na administração estadual. Em meio a essa trama, acompanhamos o desenrolar da paixão platônica pela mulher do patrão, que acaba por se consumar, provocando escândalo e grandes reviravoltas na vida de uma cidade onde todos sabem de tudo e de todos.
Graça parte da aldeia, à maneira dos melhores livros dos mestres russos, para falar do universal. E para pintar um quadro realista e duro sobre o Brasil que ali pelos anos 1920 e 1930, vivia entre a forte presença do arcaísmo do passado rural escravista e a transição para uma modernidade controlada pelas oligarquias de sempre, com base no lema do príncipe de Lampedusa, de que é preciso mudar as coisas para que tudo fique como está.
Não há heróis na Palmeira dos Índios de João Valério. Alegoricamente, o fracasso do romance histórico baseado nas peripécias dos índios Caetés e no papel redentor dos colonizadores portugueses, desejo inconcluso do escritor frustrado, é também a confirmação de que todos naquela cidade estão fadados à melancolia, à pequenez e ao horizonte estreito. E por falar em horizontes, a geografia também tem um papel importante nessa trama. A cidade, suas ruas, o açude, o cemitério, a igreja, a praça central e os descampados dos arredores de Palmeira dos Índios são pontos importantes de observação da vida na comunidade a partir do olhar desencantado de Valério. Essa presença da paisagem vai ser marcante na obra de Graciliano, especialmente, é claro, em Vidas secas.
Caetés surgiu na cena literária revelando ao mundo a antítese de seu personagem. O escritor nada frustrado, Graciliano Ramos, escrevendo o contrário do que seu anti-herói desejaria. Nada de histórias épicas, carregadas de linguagem floreada e exaltações. Graça ficaria marcado justamente pela busca da palavra exata, da expressão sem lirismo fácil, da construção seca e direta. Nascia um clássico.
P.S.: na foto que ilustra o post, o centro histórico de Piranhas, Alagoas.
São Bernardo, na minha humilde opinião, é o maior romance da literatura brasileira. É uma espécie de “reencarnação literária” dos heróis de O Morro dos Ventos Uivantes e de O Grande Gatsby. Paulo Honório, como Heatclif e Jay Gatsby, pensa que a conquista da fortuna material também trará o amor da mulher desejada, além de outras fios narrativos que se imbricam: solidão, desilusão, perda…
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De fato, São Bernardo é uma grande obra. Dos livros seminais de Graciliano, ainda me falta Angústia, que será uma das minhas leituras em 2020.
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