O diário de um legítimo Bartleby

Mario Levrero, escritor uruguaio, pode ser classificado com um dos maiores procrastinadores da história. Essa foi a conclusão que tive ao ler as 680 páginas de O romance luminoso, obra publicada depois da morte do autor, em 2004 e que acaba de chegar ao Brasil pela Companhia das Letras, em ótima tradução de Antonio Xerxenesky.

Para começar, é preciso entender o que são essas 680 páginas. Levrero era conhecido e consagrado contista, poeta e romancista, autor de raros livros, cujas oficinas literárias foram uma referência para um punhado de jovens autores e aspirantes a escritores no Uruguai. No final dos anos 1990, enfrentando sérias dificuldades financeiras e uma paralisia criativa, escreveu – ou pelo menos disse que o fez – os primeiros capítulos de uma história que, dizia aos amigos, seria epifânica. Um romance de revelações, místico, um romance luminoso.

Voltado para a sobrevivência diária, com os poucos recursos advindos das oficinas literárias minguando, recebeu de um amigo a sugestão de concorrer a uma bolsa da Fundação Guggenheim, para desenvolvimento de obras artísticas. Levrero não só fez o pedido como foi agraciado com uma boa mesada para que durante dois anos pudesse desenvolver com liberdade sua ideia e transformá-la em um romance.

E eis que começa a saga dessa encarnação de Bartleby, aquele escrivão do sensacional conto de Hermann Melville, resenhado aqui, que se instala em um escritório e simplesmente para de obedecer às ordens do patrão, não sai mais às ruas, não trabalha, passa noites e fins de semana em sua escrivaninha e a cada pedido ou exigência que lhe são feitos responde com firmeza constrangedora.

– Prefiro não!

Símbolo da procrastinação, Bartleby, o personagem, é tema dos ótimos ensaios do espanhol Enrique Vila-Matas, reunidos no volume Bartleby y conpañia, que também resenhamos. Vila-Matas analisa autores que ao longo da história da literatura disseram o seu “prefiro não” e deixaram de escrever, ou simplesmente se recusaram a publicar, entre eles o genial Juan Rulfo. São os mestres da literatura do não, todos, de uma certa forma, encarnações do espírito do enigmático personagem de Melville.

Os ensaios de Vila-Matas são anteriores à publicação de Levrero, que certamente seria citado como um dos maiores escritores a escrever 680 páginas como forma de não escrita.

Explico.

Mario Levrero jamais escreveu o tal romance iluminado. Na verdade, dedicou-se por longos dois anos a jogar Freecell e outros games em seu computador, equipado com o então moderníssimo Windows 2000. Ele também fuçava os programas em longas sessões diante da tela, alterando funcionalidades e passando semanas para criar um sistema de alerta para os horários em que precisava tomar seus remédios. Fazia iogurte caseiro, recebia amigas e amigos em casa, dedicava-se a olhar o cadáver de uma pomba morta no telhado do prédio vizinho e os estranhos rituais de outras pombas. Também enfrentava diversas doenças, reais ou imaginárias, criticava o que considerava os péssimos trabalhos da Prefeitura de Montevidéu na região portuária, onde morava em um apartamento decorado de forma quase minimalista. Enfrentava perrengues na relação com eletricistas, encanadores e entregadores do supermercado da vizinhança. Debatia-se entre sua marca preferida de bolacha água e sal e a nova marca oferecida pelo concorrente, analisando qual delas fazia menos danos à digestão. Pegava no sono, entupido de tranquilizantes, nunca antes do amanhecer, tomando seu “café da manhã” lá pelas seis…da tarde. Com isso, raramente via a luz do sol. E quando precisava sair “cedo”, algo como duas da tarde, era tomado por um terrível mau humor. Isso sem contar as pilhas de louça por lavar, os dias a fio sem tomar banho, os meses sem cortar barba ou cabelo. Ah, claro. De vez em quando ele sentava-se diante do computador, deixando de lado os joguinhos e programas, esquecia as ainda aqui não mencionadas fotos pornográficas que acumulava às centenas, e escrevia. Um diário.

Pois é assim que o leitor de O romance luminoso fica sabendo de todas as mazelas da vida de Levrero. Ele foi anotando tudo em cadernos e arquivos de Word. Dando hora, dia e ano em que escreveu cada fragmento. Ora, falando de seu cotidiano de eterna negação da escrita do romance. Ora, relatando sonhos, contando histórias que aos pedaços vão compondo sua biografia, falando de sexo, de amizade, da impossibilidade de um relacionamento que não tenha um quê esquizofrenia com dezenas de mulheres que ao longo da vida se aproximaram dele, apesar de sua aparência pouco convidativa.Romance Luminoso

Se você chegou a este ponto da resenha deve estar me achando um doido. Como assim ler 680 páginas de um diário da procrastinação e da depressão? Como aguentou essa tortura?

Aí eu respondo. Porque o livro é fascinante. Mergulhar no cotidiano de um autêntico Bartleby, um negador por excelência, alguém que sempre acha um motivo para dizer não. E que ao mesmo tempo escreve um diário de intensa complexidade, revelando suas entranhas, nos convidando a um mergulho profundo em suas paranoias. E que ainda tem de brinde reflexões sobre literatura, referências a dezenas de autores, muitos dos quais do universo dos romances policiais de baixa qualidade, uma das obsessões de Levrero. Pense em uma aventura literária que fez de O romance luminoso um dos livros mais festejados dos primeiros anos deste começo século. Zambra o compara a Bolaño, o argentino Elvio Gandolfo diz que os diários que compõem a longa introdução de mais de 400 páginas do livro são fenomenais. E, eu, modestamente, assino embaixo e recomendo a leitura.

Ah, faltou uma explicação, não é? Existe mesmo o começo do tal romance? Pois Levrero, nas derradeiras partes de seu tijolaço, descreve o que seria esse romance. Ali não há formato de diário. Existem referências a revelações religiosas que seriam justamente a parte luminosa de sua literatura. Mas ele volta aos medos, paranoias, reminiscências da infância e nos brinda com um diário disfarçado de romance.

A certeza é que a Fundação Guggenheim empregou bem seu dinheiro, mesmo que para pagar os antidepressivos e os programas de computador. Porque dessa procrastinação e da negação constante da escrita do romance saiu o que todos queriam. Um romance, na forma de um diário. De leitura longa, difícil, mas nunca cansativa.

8 comentários sobre “O diário de um legítimo Bartleby

  1. uma resenha maravilhosa! estou há tempos querendo ler Levrero. que bom que aos poucos as traduções dos latinos estão chegando por aqui.
    saudações!

    Curtido por 1 pessoa

    1. Aos poucos mesmo. Louco pra ler mais de Diamela Eltit, por exemplo. E até mesmo as edições em espanhol são difíceis de se achar por aqui ou nos sites internacionais.

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  2. sim, Carlos. andei buscando uns títulos na Amazon, mas achei poucas coisas. muitos em ebooks (sou péssima leitora com os virtuais) e nos impressos achei alguns bem caros. tem um perfil de sebo, acho que é de SP, que só vende livros em espanhol, porém, cobram caro demais. bom, eu achei.
    consegui comprar o Levrero num valor bom, estou aguardando chegar. resta agora encontrar um tanto de tempo para ler essas 600 e tantas páginas.
    a Relicário lançou dois livros da argentina Alejandra Pizarnik, em breve está para chegar algo de Sara Gallardo. espero que mais para a frente cheguem outros autores.

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