Esboços de Virginia Woolf

Eram os últimos meses da vida de Virgínia Woolf. E talvez ela soubesse disso. A guerra se aproximava, a tensão comia solta na Europa de 1939. A genial escritora britânica havia mergulhado na tarefa de biografar Roger Fry, pintor, amigo dela e de Leonard Woolf, seu marido. Fry morreu em 1934 e a empreitada de Virginia não avançava. Um tanto incomodada com o fato de ser muito íntima de Fry e também atormentada pela sombra crescente do nazismo, ela empacou na escritura e, como, uma espécie de técnica de relaxamento, começou a anotar em um caderno suas memórias, destinadas a, quem sabe, uma futura autobiografia, ou, como ela mesma afirma nas anotações, lembranças e esboços para recompor sua vida e seus relacionamentos através do passado.

A biografia de Fry foi finalmente publicada em 1940, poucos meses antes do suicídio de Virginia. E as memórias, que foram sendo anotadas à mão e posteriormente datilografadas, continuaram a ser escritas até novembro de 40. A escritora não concluiu a organização desses esboços de memória que produzia em dias aleatórios, sempre que sentia travar o impulso criador ou quando a angústia com a chegada da guerra já tinha tomado sua mente. Esses escritos, para nossa sorte, foram organizados postumamente, dando origem a um livro, com o perdão do trocadilho, memorável, como tudo que vem da lavra de Woolf.

Um esboço do passado chegou neste ano às livrarias brasileiras em nova edição caprichada da Editora Nós. É uma joia que revela muito sobre Virginia, sua obra e o quanto sua trajetória foi resultado dos arranjos familiares, amizades, relacionamentos, traumas, pequenas e grandes alegrias.

Curiosamente, nos últimos dois anos mergulhei em alguns livros de memórias marcantes. Seja na prosa elegante, simples e envolvente de Natalia Ginzburg em Léxico familiar, nos cadernos profundos e muito autocentrados de Ricardo Piglia, ou no genial exercício de procrastinação de Mario Levrero, escritores que se dedicaram a compartilhar com os leitores memórias de suas vidas com estilo literário impecável. E é o que os textos de Virginia nos oferecem.

Se levarmos em conta que os esboços da inglesa não tiveram tratamento final dado por ela, a primeira e interessante constatação diante do livro é que lemos Virginia em estado bruto, com frases que têm algo de redundância, palavras que ela certamente lapidaria, alguns trechos truncados. Mas que ali, deitadas ao papel no movimento contínuo da escrita que puxa da memória os acontecimentos de sua infância e começo de juventude têm fluidez e espelham a beleza de sua prosa.

E aí entramos na narrativa. O complexo arranjo familiar é um dos centros de suas memórias. A relação entre afetuosa e distante com o irascível pai, as situações de abuso que ela e a irmã Vanessa Bell sofreram dos meio-irmãos mais velhos no começo da adolescência, as incertezas de Virginia quanto a seu futuro. É tocante o trecho que dedica à mãe, morta precocemente, e de quem a escritora guarda as lembranças mais ternas.

A casa de praia na Cornualha onde a família passava os verões mais distantes é uma presença constante e a grande nostalgia de Virginia em relação ao passado. Com a morte da mãe, os Stephen deixaram de frequentar a casa e esse rompimento marcante com a infância é um dos marcos da entrada dela na vida adulta.

As casas onde viveram, as ruas por onde passavam e os tipos humanos com quem Virginia convivia, ou simplesmente cruzava na rua são partes constantes da narrativa, que remete à polifonia de Mrs. Dalloway, apontada por muitos críticos como sua obra-prima. Aliás, muitos traços de livros como O quarto de Jacob ou Ao farol aparecem aqui e ali nas páginas desse diário de reminiscências.

Um esboço do passado tem também um forte conteúdo psicanalítico. Freud, inclusive, aparece em algumas poucas citações. Mas é visível o quanto a prática de colocar as lembranças no papel exerceu para Woolf, naqueles tempos finais e conturbados de sua vida, um papel de autoanálise. As sombras que se abatiam sobre o casal, no entanto, foram mais fortes do que qualquer expiação que ela pudesse encontrar nas memórias. Ou, talvez, tenha sido também motivo de tormentas todo o esforço de reelaboração de um passado que continha uma dose enorme de desventuras familiares e pessoais. É sempre muito bom ler Virgínia Woolf.

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